terça-feira, 24 de abril de 2012

Um Método Perigoso



Na primeira cena do filme, temos uma linda paisagem da Suíça que contrasta com o comportamento feroz de uma moça que grita, ri e se contorce dentro de uma carruagem, enquanto dois homens tentam controlá-la. Essa moça é Sabina Spielrein, judia russa de 19 anos, nascida em uma rica família, é internada no Hospital Burgholzli em Zurich (um dos melhores da Europa) em 1904. Keira Knightley é Sabina Spilrein. Um pouco exagerada nos tiques e contorsões no início do filme, dá vida a jovem que se cura dos traumas do passado e se torna uma das primeiras mulheres psicanalistas freudianas.

Em Um Método Perigoso, o último filme de David Cronenberg, os traços que caracterizaram o autor nos seus quase vinte filmes anteriores não aparecem de maneira tão acentuada. No entanto, uma outra característica fundamental pertencente ao diretor se faz presente: a mente humana, sua capacidade criadora,  e as entrelinhas que engendram a formação do sujeito a partir do outro das relações que trava e que o espelham. Cronenberg dirige com sutileza. A grandiosidade do filme está no seu pano de fundo, nos personagens célebres: Freud e Jung e também em Sabina Spielrein. Cronenberg se curva a eles e os retrata de uma maneira tão neutra, tão clássica que nem parece Cronenberg. Michael Fassbender e Vigo Mortensen são Carl Jung e Sigmund Freud. Excelentes atores mas distantes dos personagens reais.

Carl Gustav Jung, suíço, 30 anos, era médico no hospital onde Sabina foi internada como histérica. Ele era um homem alto e forte. Casado com uma mulher riquíssima, morava bem e não dependia de seu trabalho para sobreviver. No palco principal, os dois personagens, Sabina e Jung, se aproximam através do método criado por Freud, judeu nascido na Áustria, o pai da psicanálise, fundada em 1900, quando da publicação de seu livro “A Interpretação dos Sonhos”. E ao contrário de Jung, Freud já tinha fama mas vivia sem luxos, com a mulher, a cunhada e seis filhos num apartamento de classe média em Viena.

Para os que não sabem do se trata o filme, um breve parênteses: Um Método Perigoso  nos fala de Psicanalise a partir da relação de Jung com a sua paciente mais famosa, Sabina Spielrein, que depois se tornaria sua amante e colega de profissão e das relações deste com o seu mestre, Freud, com o qual romperia alguns anos depois.

Jung era estudioso do comportamento humano, fazia pesquisas nessa área mas não conhecia Freud pessoalmente. E tudo começa quando Sabina torna-se sua primeira paciente a ser tratada através da “talking cure” ou seja, um tentativa de cura onde é preciso que o paciente fale sobre os males que o afligem, método este criado por Freud. É bom lembrar que, nessa época, os doentes mentais que possuíam posses eram tratados com massagens,  banhos e outros métodos ineficazes. Aos pobres, restava apodrecer numa instituição pública. E nessa época a histeria era vista como uma doença mental.

Em 26 de outubro de 1906, Jung  escreve a Freud: “Trato no momento, utilizando seu método,de uma histérica. Caso difícil; uma estudante russa de 20 anos, doente há 6.” (in “Freud/ Jung-Correspondência Completa- Ed. Imago- p.47). A partir de então Freud e Jung passaram a se corresponder (359 cartas que posteriormente foram publicadas entre 1906 a 1913). O primeiro encontro entre eles, em 27de fevereiro de 1907, transformou-se numa conversa que durou treze horas ininterruptas. Depois deste encontro estabeleceram uma amizade de aproximadamente sete anos, durante a qual trocavam informações sobre seus sonhos, análises, trocavam confidências, discutiam casos clínicos.

É através de Sabina que os dois médicos se aproximam, trocam cartas e se visitam. Mas, Freud e Jung eram diferentes. O que os uniu, também os separou. Jung, desde o principio não simpatizava com o papel central que Freud dava à sexualidade nas neuroses. Mas, se aproxima dele, como quem trata com um mentor. E Jung por sua vez se interessava por áreas especulativas que pareciam superstições para Freud e isso era exatamente o que Freud não podia admitir em quem depositava a esperança de ser seu herdeiro. Mais, a quem pedia que o ajudasse a defender a nascente psicanálise, para que ela fosse vista com seriedade e aceita por círculos respeitados da academia. E, principalmente, Freud precisava de um ariano influente para levar a psicanálise a grupos mais amplos do que aquele que o cercava em Viena, constituído por médicos judeus.

Mas, Cronenberg não deixou de colocar sua assinatura. O que se conhece como rumores de um encantamento romântico entre Jung e sua paciente Sabina, transforma-se numa relação sado-masoquista, na qual Jung, amante cruel, dá a Sabina o que ela pede: surras misturadas a beijos e orgasmos. A menina que era espancada pelo pai e que transforma a dor em prazer para se defender, entrega-se agora, com paixão, ao homem que faz com que ela fale e relembre a excitação que sempre sentiu com experiências de humilhação.

As cenas imaginadas por Cronenberg, belamente eróticas, são uma “licença poética” que asseguram o seu jeito de ser cineasta. E aqui reside justamente o perigo do método analítico, quando o psicanalista mal formado esquece o lugar que ocupa e atua as fantasias do seu paciente ao invés de interpretá-las e nunca deixar de lembrar que não é amado ou detestado pelo que é, mas pelo que representa.
Larissa Nogueira
O professor da USP e Psicanalista Christian Dunker  deu uma entrevista a folha mostrando algumas coisas interessantes e explicando alguns conceitos psicanalíticos citados no filme.


Você ficou com a impressão de que o filme pende para a defesa de Freud e aponta os defeitos de Jung? Será que os junguianos vão ficar bravos? Você ficaria, se fosse junguiano?

Christian Dunker - O filme aborda com sobriedade uma das rupturas mais importantes e marcantes da história intelectual do século XX. Normalmente, essa ruptura é atribuída à resistência de Jung em aceitar que todos os sintomas envolvem a participação decisiva da sexualidade. Para o suíço, o conceito de libido devia ser pensado como “a totalidade da energia psíquica”, e não apenas como sinônimo das disposições sexuais. Para demonstrar sua ideia, Jung recorre fortemente aos mitos, à história das religiões e aos símbolos.

O filme acerta ao mostrar Freud tolerante e, na verdade, incentivador das teorias sobre a telepatia, o místico e a espiritualidade. Desde que elas não transgridam as regras da demonstração científica.

A grande novidade é mostrar que essa diferença teórica, algumas vezes retratada como uma incompatibilidade entre temperamentos, está permeada por uma querela pessoal. Para Freud, o grande erro de Jung foi ocultar seu relacionamento com Sabina, e não propriamente ter sido e infiel a sua esposa. Contudo, havia um conflito de gerações, um conflito entre o “príncipe da psicanálise” e o “pai da psicanálise” — e isso o filme deixa transparecer claramente.

O filme não demoniza Jung, mas mostra a gravidade de seu conflito e sua pequena disposição a enfrentá-lo naquele momento. O fato de que ele manteve amantes ao longo da vida, inclusive ex-pacientes, soa irônico para alguém que defendeu a não prioridade do conflito sexual.

É possível que muitos junguianos fiquem irritados com Cronenberg. Não porque ele favorece Freud, um grande adversário, afinal, mas porque mostra Jung sendo derrotado por um adversário que ele mesmo considerava de menor envergadura. Tirando as oposições teóricas geniais, afastando Freud do centro do ciclone que tomou a vida de Jung, o que sobra é um mito prosaico, humano.Mas há um elemento que fica sugerido no filme: a profundidade do abismo no qual a ruptura com Freud o colocou. Dessa crise pessoal emergirá o grande autor no qual Jung se transformou. Ou seja, talvez ele precisasse disso para se tornar o que era. “É preciso fazer coisas imperdoáveis para que uma vida valha a pena”, mostra o filme.

É condenável o envolvimento entre Sabina e Jung?

Hoje é indiscutível que certas coisas não devem acontecer entre pacientes e analistas, mas isso não significa existam papéis claros e distintos. Os riscos profissionais são inevitáveis, é por isso que somos profissionais do risco. Daí a pertinência do título Um método perigoso.

Por que mostrar Otto Gross no filme?

Otto era um psiquiatra delirante, viciado em cocaína, que acreditava que o mundo iria acabar se não conseguíssemos por em prática a liberação sexual e a crítica do patriarcalismo. Foi ele quem inspirou a descoberta da esquizofrenia (feita por Eugen Bleuler, médico de Sabina). Otto e Sabina esperam o mínimo dos que cuidam do sofrimento psíquico: tornar os pacientes aptos para a liberdade. Mas muita gente se esquece disso hoje em dia.

Mas por que Cronenberg foi se meter a fazer um filme paradão? Sem sangue, sem experiências malucas e mafiosos russos? E sem moscas?

Christian Dunker – Cronenberg fez seus melhores trabalhos justamente sobre o problema da dissolução do eu: Videodrome (1983), A mosca (1986), Gêmeos: mórbida semelhança (1988), Naked lunch (1991) e Spider (2002). E o filme todo trata dessa dissolução, processo vivido por Sabina e apontado em sua poderosa ideia de que a verdadeira sexualidade pede a destruição do ego.

A dissolução do eu significa que ela não pode ser reconhecida como mulher, como esposa, como médica, como alguém diferente de uma filha. Muitos quadros se caracterizam por uma perturbação da lógica do reconhecimento (depressão, mania, histeria, obsessão). Outros tantos podem ser alinhados com os problemas gerados por algo exterior (no caso das fobias).O que caracteriza o quadro de Sabina é a combinação entre os dois tipos de funcionamento, com sintomas dos dois tipos.

Ilustra muito bem isso a recordação na qual o pai de Sabina fazia com que ela beijasse sua mão (reconhecendo sua autoridade) antes que a mesma mão paterna a espancasse (como um objeto).

Suas conquistas na esfera do reconhecimento, propiciadas pela liberação de seu desejo de estudar, tornar-se psiquiatra, depois psicanalista (para o horror de Jung), associada à maternidade e ao casamento, podem sugerir a imagem de uma Sabina pacificada. Mas até onde pude acompanhar, isso está longe de representar a mulher que era, sobretudo, uma amante do conflito, não de sua solução.

Jung é genial porque percebe que a espasmódica e enlouquecida Sabina tem o grão de ousadia necessário para se tornar psiquiatra. A “loucura” de Sabina é a causa eficiente do filme. Alerta para a insanidade das fronteiras e para a força criativa que acompanha a destruição da individualidade.


quarta-feira, 14 de março de 2012

Vingança pode envenenar


Matéria publicada na edição de 11/03/2012, no Jornal Amazônia - PA

Pessoas que premeditam revide, com caráter de crueldade, são propensas a se tornar patológicas

Todo ser humano é capaz de cometer um ato de vingança, de acordo com a psicóloga Carolina Miralha, membro do corpo Freudiano - Escola de Psicanálise - Seção Belém. Não existe especificamente um tipo de pessoa que seja capaz de cometer um ato como esse, acrescenta a psicóloga. "O que se pode diferenciar é a forma como esta vingança será realizada - e é dessa forma que as pessoas podem ser diferenciadas", explica.
A psicóloga alerta para os casos mais graves. "Não devemos vincular vingaça à violência, mas o que torna doentio é quando este ato se torna o motivo de viver daquela pessoa", esclarece.
Nos casos de vingança cruel devemos lembrar a chamada "justiça com as próprias mãos", quando pessoas esquecem os trãmites legais e promovem o veredito e a execução da pena por conta própria.
Pessoas que premeditam vinganças, com caráter de crueldade são propensas a uma patologia, segundo Carolina Miralha. "A vingança pode vir também de forma institucionalizada - os processos jurídicos contra danos morais, por exemplo, são uma forma de tentar reparar uma injustiça causada", explica a psicóloga.
A vingança é a tentativa de restabelecimento de um equilíbrio provisoriamente quebrado, uma forma de reparação. "Isto não significa dizer que cada ato de injustiça tenha que necessariamente causar uma vingança. Devemos pensar em punir injustiças e não vingá-las", afirma Miralha.
A especialista conta que a vingança é uma forma de transferência de uma dor. "Ao buscar vingança ou punição, a vítima crê que aquele que lhe causou um dano, deve pagar na mesma medida para sinta a mesma dor e a mesma humilhação que ela experimentou ao ser lesada", fala.
Para a psicóloga, a vingança independe da maturidade do indivíduo. O ato de se vingar deve ser analisado de acordo com as experiências de vida de cada um. "Cada caso é um caso. Devemos analisar cada situação e de que forma elas geram consequências na vida do ser humano", disse Miralha.

Embora muitos aspectos da vingança possam lembrar o conceito de igualar as coisas, esse sentimento é mais destrutivo do que construtivo. Quem busca vingança deseja forçar o outro lado a passar pelo que passou ou garantir que não seja capaz de repetir a ação nunca mais.
Quem dá o troco tenta se livrar da dor

"Quando a raiva se acumula dentro das pessoas, provocando sofrimento, elas precisam se livrar dessa dor. E, muitas vezes, recorrem à vingança", explica o psiquiatra Guilherme Medina, membro da Sociedade Brasileira de Psicanálise. Segundo o médico, formado pela Faculdade de Medicina da USP, o revide imediato é um modo primitivo de transferir a dor para o outro. Bateu, levou. Já a vingança é mais complexa.
"Leva em consideração quem bateu, como bateu e o agente da vingança só se satisfaz com a garantia de que o outro sofreu. De um modo extremo, pode se dizer que a verdadeira vingança aniquila o outro", diz Medina. "Dependendo do motivo, se pode até perdoar a morte como consequência de um ato vingativo", diz o psiquiatra, em referência à interpretação legal de legítima defesa da honra, muito usada até a década de 1970 no país, para absolver homens que matavam em casos de adultério.
Até mesmo no Velho Testamento há referências da vingança, ou olho por olho, como algo legítimo. Para a psiquiatria, a vingança tem a ver com a maturidade de alguém suportar uma dor. "Quanto mais madura e equilibrada for uma pessoa, menos vingativa ela será", diz o psiquiatra Medina.

Pessoas vingativas revelam de imaturidade a desequilíbrio

"A vingança é um prato que se come frio". O autor dessa frase é desconhecido. Já foi atribuída a vários personagens de ficção e escritores, entre eles o francês Pierre Choderlos de Laclos (1741-1803), que escreveu "Ligações Perigosas", um romance que se passa na França do século 18 e retrata as maquinações movidas pela vingança. O tema, aliás, é um prato cheio para as inspirações literárias. Outro grande e famoso romance é "O Conde de Monte Cristo", do também francês Alexandre Dumas (1802-1870). A saga do marinheiro Edmont Dantè, que arquiteta por mais de uma década seu revide contra os três homens que o condenaram à morte em uma prisão insular, é, provavelmente, a mais famosa história que retrata uma vingança.
"O ato patológico da vingança é cometido por pessoas com estrutura emocional frágil, pessoas que não permitem nenhum tipo de castração ou frustração e que são extremamente narcisistas", explica Sergio Ignacio, membro da Sociedade Paulista de Psicanálise. "A personagem Tereza Cristina [de Christiane Torloni], da novela ‘Fina Estampa’, por exemplo, tem um código social próprio e quem o infringe está fadado a receber sua vingança. Como esse código não é o mesmo da sociedade, porque é próprio, individual, ela se vinga o tempo todo. Isso, para a psicanálise, é uma doença", diz Ignacio.

Desprezada por família rica do namorado se vinga da sogra

A engenheira Marina, de Taubaté (SP), tinha um namoro tranquilo com o fluminense Pedro (nomes fictícios), estudante de relações internacionais, quatro anos mais novo do que ela. Tudo estava tranquilo até a mãe do estudante começar a interferir no relacionamento, alegando que ela era "muito velha para ele e estava interessada na fortuna da família". Pressionado, Pedro, que dependia da mãe, terminou o namoro de dois anos.
"Em momento algum insinuei que gostaria de me casar com ele. Sempre fui independente e já tinha um bom salário. Era totalmente infundada a suspeita de que tinha a intenção de dar o golpe do baú. Além do mais, a tal fortuna que ela apregoava não existia, uma vez que a família estava em notória decadência. Eu simplesmente gostava de Pedro de um jeito que ela não poderia gostar."
Inconformada e sentindo-se desrespeitada, pela forma como foi tratada por ele e pela ex-sogra, Mariana começou a arquitetar uma vingança. Denunciou a loja da mãe do namorado, que funcionava de maneira irregular, à prefeitura da cidade e enviou uma carta anônima relatando o comportamento nada aristocrático da nova namorada de Pedro à mãe dele. "Senti-me vingada, aliviada e pude seguir em frente com a minha vida", afirma Marina, hoje casada e mãe.
A vingança está em todo o lugar, e não só na cabeça da vilã Tereza Cristina. Ela está muito presente no dia a dia das pessoas. E por que elas se vingam? "É um escapismo. No latim, vingar-se quer dizer liberar-se, clamar. É a justiça dos homens no seu estágio selvagem", diz o terapeuta. Segundo ele, a vingança acontece todo momento. No mundo social e corporativo. "Pode vir como uma frase que comprometerá alguém, um e-mail não enviado, um documento propositalmente extraviado."

domingo, 11 de março de 2012

Biutiful



Da cidade de Barcelona, podemos contemplar as entranhas, os arranjos fora da lei que ligam redes de comércio ilícito, corrupção policial, relações interpessoais totalmente amorais. E, principalmente, os elementos mais degradantes das condições de vida e trabalho de imigrantes africanos e orientais que, no velho – e cada vez mais decadente – continente, sucumbem junto a seus sonhos e esperanças. É neste lugar que Uxbal (Javier Bardem) está inserido, numa versão mórbida do que pensamos ser uma cadeia produtiva. É um homem que tira seu sustento de um esquema sórdido, mas no entanto é capaz de gestos sublimes. Um ex-marido irascível, mas consciencioso, um pai tirânico e amoroso, violento e doce. O tipo de personagem que não conseguimos reduzir as tipologias de cunho pedagógico. Vários em um mesmo homem, e no limite com todos eles.

Uxbal tem sua morte anunciada pelo diagnóstico de uma doença terminal. E ele mantém com a morte uma curiosa relação. A morte é o personagem que dá as cartas. Uxbal é conhecido na comunidade como aquele capaz de conectar-se com os mortos, intermediando processos de desencarnação. Mas nem esse apelo nos consola. Pelo contrário, é em gestos e acenos concretos que Uxbal consegue reaver algo de sua humanidade. Reavendo a ex-esposa desequilibrada –  interpretada por Maricel Álvarez – ou intercedendo pela diminuição do sofrimento daqueles que agencia, enfrentando o enigma da paternidade, que, conforme nos ensina Freud, é aonde esta os fundamentos de nossa relação com a Lei, com a moralidade,  e também com a transmissão da bagagem simbólica por meio da qual a cultura humana supera a transitoriedade de existências individuais. Eis aí onde o título da obra encontra seu mais pleno acabamento.

“Papai, você sabia que as corujas quando morrem soltam uma bola de pelo pela boca?” Essa pergunta feita por seu filho caçula é articulada a um momento de reencontro com os rastros e restos de seu próprio pai, conduz a mais bonita e emblemática sequência do filme. O cenário é inóspito, glacial, onde Carvalhos (robles) repousam sob a neve e vemos uma coruja morta. Um cenário imaginário, em que Uxbal revê o pai. Mas quem é quem entre pai e filho? Uma cena antológica, sobre a invenção ou reinvenção de um pai. Sobre a conquista de um lugar no mundo que nos mostra que a fragilidade humana, encontre no outro uma guarida, um reconhecimento e, mais ainda, um sopro que é capaz de estabelecer laços cujos fundamentos são a falta e a finitude. A beleza floresce no solo do desamparo, da precariedade e esta cena nos mostra que  a vida é a trama e o enlaçamento  que cada sujeito é capaz de fazer  a partir dos fios que herda do outro. E como toda herança, é preciso que o sujeito assuma para si para torná-la sua, para assim tornar-se apto a transmiti-la.

O belo, foi compreendido sob a perspectiva do véu que recobre o horror da morte, do vazio. O “suave torpor” da beleza, na expressão de Freud, pareceu outrora o bálsamo com o qual nos consolávamos do mal-estar do mundo. Como enfrentar a morte? Como lidar com a finitude e fragilidade da nossa existência sem, no entanto perder o encanto e a paixão pela vida? Não compramos o bilhete da nossa partida definitiva, mas o que fazer quando sabemos que temos 2 a 3 meses de vida? Vida e morte caminham juntas inseparáveis, poderosas, e Uxbal nos mostra muito bem essa caminhada inevitável. Não pensamos muito na morte, até mesmo por uma defesa do ser humano, colocamos um véu ilusório que nos afasta da percepção da morte, mas que, em certas circunstancias, e num dado momento, cai o pano, e a morte se impõe, apesar de todo nosso desejo de viver.

O filme toma seu título de empréstimo a uma cena em que Ana, filha de Uxbal, pergunta ao pai, como se escreve beautiful. Em singelas passagens o filme cerne sua costura central, e que se define por um movimento contundente entre transitoriedade e permanência, entre abandono e amor, solidão e presença, desamparo e laço. Nessa cena, a resposta do pai transmitida à filha reaparecerá mais adiante como emblema da nomeação de seu desejo. “Os Pirineus são biutiful”, escreve Ana em seu desenho, no qual se pode discernir a grafia singular de um desejo que não tem nome, que põe em cena toda a expectativa de reconciliação de uma criança com seu turbulento universo parental e sua precária condição social. Biutiful é também a rubrica sob a qual, sem saber, essa jovem cultivará impressa e viva, na argila de sua memória, a herança de seu “roble”, nas palavras do próprio diretor, seu pai.

Iñárritu, Diretor do filme, não é um moralista, mas se ele fosse, talvez Biutiful tivesse um lamento teológico por conta do destino tão doloroso, reiterando toda a nossa culpa e incitando nossa miséria perante a fúria dos deuses que insistimos em fustigar. Ou,  ele também poderia se voltar a uma demonstração de vícios, depravações e outras desumanidades, no intuito de firmar o desamor e a paranoia que reivindicam seu lugar entre os mais basilares fundamentos de nossa condição existencial contemporânea. Mas não é esse o caso. O filme mostra o que há de insuportável no real que nos cerca que nos habita, e isso sem a finalidade de nos prender na conjuntura das leis divinas e “naturais”.

Não faz também que ele faça da realidade um show, um espetáculo, que classificam e hierarquizam os valores humanos reiterando a instrumentalização dos vínculos, o consumo desenfreado de si e dos objetos, o hedonismo disfarçadamente suicida e as demais respostas mercantilizadas frente ao desgosto do mundo. Mas não. O autor e diretor de Biutiful se demarca habilmente da posição do moralista, realizando um filme eticamente complexo. E que nos mostra o mínimo necessário para vermos o sonho civilizatório europeu, sua faceta recalcada.

Somos levados imediatamente, à perguntas que tanto adiamos e normalmente nem pensamos, enquanto tudo parece andar muito bem conosco. Como está nossa vida??? São tantos os afazeres, os compromissos que nem sempre temos tempo, ou temos medo de tentar colocá-la em ordem. É isso mesmo, medo! Quando pensamos, repensamos em nossos relacionamentos, nossas realizações, reavaliar a prioridade do nosso tempo, nossos desejos e em que devemos colocar verdadeira importância. Pensar em nossa vida, falar de nossos temores, nossas angustias, não é fácil, mas falaremos disso em outro post.

           


Cada Gêmeo com seu estilo

1)    É saudável fazer comparação entre irmãos gêmeos?

Não! Nenhuma comparação é saudável. Algumas mães, ainda com os filhos no útero, começam um processo de diferenciação, alegando que um é mais inquieto ou mais dorminhoco que o outro. Normalmente os identificam pela posição que ocupam no útero. Perceber as diferenças entre os filhos desde o útero pode ser algo muito útil no sentido de diferenciar a individualidade de cada bebê, mas extremamente negativo se a partir daí começar as comparações entre os gêmeos.


2)    Como os pais devem se comportar para que não haja rivalidade entre os gêmeos?

Cada filho tem um lugar único dentro da estrutura familiar e é importante que os pais estejam atentos a isso. Uma coisa muito comum entre crianças gêmeas e vê-las vestidas de maneira igual. Pode ser até bonitinho, mas mesmo quando são pequenos isso de certa forma prejudica a formação de cada um. Quando os pais agem dessa maneira dificultam que cada criança tenha a sua individualidade, dificultando também a diferenciação entre os filhos.


3)    Isso pode comprometer a autoestima? Como?

Sim, é muito importante como disse acima que haja uma diferenciação entre os gêmeos. Por exemplo: Cada criança tem seu nome e é fundamental que eles sejam chamados cada um pelo seu nome e não “os gêmeos”. Pois, assim esse rótulo, pode causar uma baixa auto estima, pois aprenderam desde cedo que não podem exercer a sua individualidade e identidade.

4)    A competitividade entre gêmeos é comum?

Assim como qualquer relacionamento entre irmãos, é normal existir competições, atritos, mas quando o relacionamento se dá entre irmãos gêmeos, essa competitividade pode ser maior, afinal eles dividiram o lugar até dentro do útero. Por isso os pais tem que saber que não é porque eles são parecidos ou iguais que devem fazer as mesmas coisas. Cada um é cada um, com suas qualidades, defeitos, desejos e planos diferentes.

5)    Essa situação pode afetar na personalidade de algum dos irmãos?

Pode. Por exemplo: ás vezes uma das crianças pode ficar com dificuldades para fazer amizades, ficando de espectador do outro e seguir por um bom tempo ou pelo resto da vida sendo um expectador do outro irmão ou irmã. Nesse caso o que se orienta é separá-los, por algum tempo. Assim, sem o irmão ou irmã, poderá fazer suas próprias amizades. E, o aumento da sociabilidade irá lhe proporcionar independência e confiança, além de oportunidade de desenvolver talentos e interesses individuais. Como disse acima a tarefa dos pais é oferecer oportunidades para que cada criança possa desenvolver sua autonomia e sua individualidade. E isso é tão importante para gêmeos, como para uma única criança. Uma boa forma de auxiliá-la nesse processo é permitir que a criança faça escolhas.

domingo, 26 de fevereiro de 2012

Um ácido sentimento

O sentimento é forte, diria até avassalador, Como é cruel o ciúme!!. Na mitologia grega, levou Medéia a matar os próprios filhos para se vingar de Jasão. Nas histórias de Shakespeare, fez com que Otelo acreditasse nas intrigas de Iago e matasse a própria mulher, Desdêmona. O pintor Edvard Munch - um dos criadores do expressionismo. Em dezembro de 1893, em Berlim, Munch fez exposição individual com várias pinturas intitulada Love. Fazem parte dessa série as obras Melancholy (1891), Ashes (1894), Jealousy (1895), The Kiss (1897), Separation (1900), entre outras. Munch foi o pintor de angústias existenciais e ameaças invisíveis como o ciúme. Emoção tão antiga quanto a própria humanidade, esse sentimento, ainda hoje, leva diferentes gerações às mais diversas e imprevisíveis reações diante da iminente perda do objeto amado.
Fala-se muito do ciúme, quando este se coloca presente na vida amorosa das mulheres. Entretanto, parece ser nas escolhas objetais dos homens (quando este tem como objeto de desejo, de amor a mulher) que o ácido sentimento aparece muitas vezes como condição de escolha, como um modo particular de gozo. É... eles também morrem de ciúmes!

Para Freud, o ciúme se coloca como algo fundamental nas escolhas amorosas dos homens, sendo este (o ciúme) portanto, herdeiro da trama edípica vivida pelo sujeito. O conhecido Complexo de Édipo teorizado por Freud, e mais tarde reeditado por Jacques Lacan (psicanalista francês), que resumindo (coisa que não gosto muito de fazer), trata-se no caso dos meninos de um “apaixonamento” pela figura materna e reações hostis para com o pai. Este “romance” que é vivido de forma inconsciente, tem seu fim quando o menino se dá conta da impossibilidade e dos riscos desse sentimento, então abre mão de seu desejo, aceitando que esta mulher (a mãe), pertence a um outro homem (pai). O menino desiste do amor da mãe e o entrega a um terceiro

Em 1922, mais de duas décadas depois, Freud escreveu: " Embora possamos chamá-lo de "normal", o ciúme não é, em absoluto, completamente racional, isto é, derivado da situação real, proporcional às circunstâncias reais e sob controle do ego consciente, pode achar-se profundamente enraizado no inconsciente, ser uma continuação das manifestações da vida emocional da criança e originar-se no complexo de Édipo ou das relações entre irmãos do primeiro período sexual. Além do mais, é dígno de nota que, em certas pessoas, ele é experimentado bissexualmente - o homem não apenas sofrerá pela mulher que ama e odiará seu rival, mas sentirá pesar pelo homem a que ama incoscientemente e pela mulher, sua rival".

A rivalidade, a hostilidade, a conquista e os ciúmes parecem ser desta época reeditada na vida adulta dos homens, questões que fazem-se necessárias em suas posteriores escolhas. Em Contribuições a Psicologia do amor, Freud fala, no que se refere as escolhas de objeto feita pelos homens, de “quatro condições necessárias”. A primeira delas seria a do “terceiro prejudicado”, diz que um homem interessa-se por uma mulher sobre a qual um outro homem lhe reivindique a posse (marido, pai, amigo), seria uma mulher que pertença a um outro homem, este homem revive assim a trama edípica. Comumente ouço no discurso de homens, esse gozo em existir na vida da mulher um outro, sobre o qual ele triunfe. Seja um amigo, primo, um ex, que ele por exemplo, lhe sugira o afastamento.

A segunda condição combina-se com a primeira, e a mulher lhe aparece enquanto leviana, uma mulher a qual o homem coloque sua fidelidade em dúvida. Ele observa que aquela mulher de reputação inquestionável não exerce nos homens nenhuma atração, é a outra, que o faz montar cenas,  (em que a infidelidade está presente), e lhe faz despertar o ciúme, que faz parte de sua condição erótica.

A terceira condição trata-se da escolha de uma mulher de alto valor, e a última refere-se ao desejo de salvar essa mulher. Onde ele ocupa uma posição de ser “tudo” para ela, de que esta precise dele, de sua ajuda, de sua força, sua virilidade, seu amor. E salve-a por não abandoná-la, já que sem ele, esta mulher estaria perdida.

Podemos dizer então que as condições que se impõe ao homem seriam de que, sua amada não fosse desimpedida, que lhe deixe duvidar da fidelidade, que possua de fato o alto valor que lhe atribuiu e que responda a sua necessidade de sentir ciúmes, ou seja, de rivalizar com um outro homem.

 *Este texto não tem como respaldo a experiência clínica das fantasias masculinas, mas uma combinação de observações da vida cotidiana e considerações psicanalíticas teóricas.
Larissa Nogueira


domingo, 12 de fevereiro de 2012

Melancolia

            Décimo quarto filme do dinamarquês, Lars Von Trier, chega às locadoras. Ficção? Filme desastre? drama psicológico? Isso! Melancolia pode ser visto sob qualquer um desses ângulos. No começo do filme temos uma dica do que está por vir, cenas lindíssimas sobre a música de Tristão e Isolda de Richard Wagner.
            A Terra está prestes a ser atingida por outro planeta, Melancolia, azul como a Terra, um duplo nosso. Duplo assim como o filme que se divide em duas partes, destinadas a duas irmãs. A primeira dedicada à Justine (Kirsten Dunst), irmã mais nova, e a segunda à Claire (Charlotte Gainsbourg), materializando assim a dualidade de uma reflexão sobre a irmandade.
            Durante a festa de casamento de Justine e Michael (Alexander Skarsgard), as aparências que o casal de anfitriões Claire e John, tentam manter arduamente começam a rachar, desde o atraso dos noivos, passando pelos discursos dos pais divorciados das irmãs, o sumiço constante da noiva Justine em sua própria festa de casamento. Assim temos uma quebra das crenças convencionais de que o casamento, o sucesso profissional e financeiro possa sustentar qualquer tipo de estabilidade, seja pessoal ou coletiva.
            Para além do fim do mundo, o filme nos fala da condição humana. Claire é racional, adaptada as convenções, esposa, mãe e vê o fim como o fim de sua família, de seu filho, do amor de seu marido, tenta fazer um elo entre Justine e o mundo real. Claire, não compreende o inevitável da vida, enfrenta a morte com todo o desespero que uma neurose pode proporcionar. E em uma das cenas mais belas do cinema, observa a irmã de longe se banhando nua, na luz noturna do reflexo do planeta melancolia. Justine, que apática vê nisso tudo a chance de findar essa dor, a dor de um mundo que parece não fazer parte, um mundo que não a quer. Existe ordem no caos.
            Podemos observar também uma linha edípica, onde uma mãe desesperançosa cultiva identificações em Justine e um pai que passa pela vida da filha quase de "carona", na cena do bilhete que deixa para a filha ao ir embora "de carona" de seu casamento.
            As pernas pesadas, amarradas por fios de lã não levarão Justine a uma vida interna feliz. Justine tem uma ausência materna, sofre com a falta do que jamais teve e é tomada pela melancolia, uma tristeza de não receber hoje (cena do discurso do casamento) nem quando criança o amor tão necessário para seguirmos sozinhos. Em outra tentativa Justine procura o pai - pura ausência - o mesmo não a reconhece e mais uma vez não espera por ela. Justine é só e sempre foi. De novo o vazio.
            O relacionamento com a mãe é fundamental, lá estão os alicerces que precisaremos para seguir em frente. No início de nossa existência precisamos de um olhar, do reconhecimento de alguém que nos deseje e nos nomeie para mais tarde nos libertarmos desse lugar do desejo materno, saber quem somos para além do que nos desejaram, para além do que nos construíram.
            Justine tinha um vazio, não uma construção. Tinha beleza, juventude, dinheiro, talento, um lindo homem apaixonado por ela, resumindo: tinha tudo para ser feliz! Tudo menos esse alicerce do qual falamos: a mãe. Então, Justine, no seu grande dia de mulher, dia do seu casamento, ela desaba, ela rui. Rui, como que devastada por um planeta destruidor, só que este não vem de outro lugar, vem de dentro de Justine.
            Na segunda parte do filme o quadro de apatia de Justine, anunciado na primeira parte, logo se faz claro como uma melancolia. É o que vemos na cena em que Claire chama Justine para comer sua comida predileta, bolo de carne, e Justine diz chorando que o bolo tem gosto de cinzas. Vemos então de maneira dramática como é a vida para um melancólico: insossa, para ele não há prazer possível.
            Na melancolia não vemos somente um quadro clínico, mas também uma condição d´alma e podemos sentir enquanto expectadores o desconforto que essa condição humana nos causa. Em Luto e Melancolia, Freud nos diz que no luto o estado de desânimo é provocado pela perda do ser amado e que na melancolia não há fonte tão clara dessa ferida. "A melancolia está, de alguma forma, relacionada a uma perda objetal retirada da Consciência" (Freud, (1917, p.278).
            Podemos ainda pensar nas irmãs como diferentes lados de uma mesma mulher. E se fizermos isso podemos lançar mão de todo o conteúdo psicanalítico sobre o feminino. Afinal, o filme nos dá recursos para isso, pois todos os homens da história partem! O pai e o marido de Justine vão embora, o marido de Claire suicida-se, o único homem que permanece é Leo, filho de Claire, uma criança sobre os cuidados de duas mulheres.
            Melancolia nos convida a várias interpretações, nos mostra que nada é mais calmo e relaxante que a esperança, seja apenas um fio dela que faz Claire relaxar ao sol ou o contrário que permite que todos esperem que a passagem do planeta seja apenas algo lindo e inesquecível.
           

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

Com a palavra, a Histeria.



No século XIX, Freud, ainda atuando como médico neurologista ficou intrigado com a histeria, até então naquela época para a medicina os sintomas eram exagerados, escandalosos e eram tidos como uma farsa para chamar a atenção. No entanto, para Freud esses sintomas eram enigmáticos e assim ele procurou decifrá-los. Esse ato o levaria a descoberta do inconsciente e a fundação da psicanálise. Sorte nossa!!
Freud vai para Paris para estudar com Charcot, onde o sistema hospitalar francês inovava no tratamento das doenças que eram tidas como nervosas, lá em Paris é possível tratar esses pacientes dentro do hospital La Salpétrière, separando-os dos outros para examiná-los, observar seus sintomas e classificá-los. E é lá que Freud assiste Charcot hipnotizar suas pacientes histéricas e assim tentar buscar uma cura para elas. Quando volta de Paris, Freud instala-se em Viena e começa seu trabalho como médico de enfermidades nervosas, seu tratamento era feito através da eletroterapia (que largou rapidamente) e a hipnose. Esta lhe dava condições de fazer uma investigação psíquica no paciente além de potencializar o efeito sugestivo.
Josef Breuer, amigo e mestre de Freud, lhe confidência que tem tratado de uma moça (O caso Anna O) através da hipnose, onde ela fala de cada um de seus sintomas até lembrar o acontecimento inicial que os teria provocado e assim a paciente é sugestionada a não ter mais aquele determinado sintoma e é desta forma que aquele sintoma desaparece. Freud acompanha Charcot em alguns desses atendimentos e começa a ver em outros pacientes tratados por ele mesmo as descobertas de Breuer.
Em 1893, Freud e Breuer publicam esses achados em “Comunicação Preliminar”, que em 1895 será incluída num livro chamado “Estudos sobre a Histeria”. Juntos concluem que os sintomas são resultados de situações traumáticas e que a hipnose faz com que os sintomas e o sofrimento se conectem com esses restos, com as lembranças, com as “reminiscências” das situações afetivas em que se formaram. As circunstâncias em que elas aconteceram, impediram ou inibiram a possibilidade de uma elaboração psíquica bem como a expressão de impulsos ou de afetos, resultando numa formação de sintomas sustentados por uma grande carga afetiva e com a hipnose havia uma recuperação mnêmica que consistia em reviver a situação traumática com toda a sua carga afetiva e assim possibilitando uma descarga dessa energia que até então estava investida em sintomas corporais.
Freud seguiu seus mestres, utilizando a hipnose, mas quando se deparou com os limites da técnica no tratamento da histeria e quando verificou que as próprias analisandas, pediam que as deixassem falar, resistindo a cair no sono hipnótico e contando seus sonhos, vai mudando a sua forma de trabalho aos poucos, passo a passo, em cada atendimento, abrindo caminho para o método psicanalítico, colocando-se então a escutar as histéricas e constata seus efeitos terapêuticos, substituindo assim a sugestão pela associação livre e pela atenção flutuante, colocando os analisandos e os responsabilizando também pelo seu processo de melhora. Desta forma faz com que as histéricas procurem nelas mesmas o caminho de seu desejo.
As histéricas são de grande importância para a psicanálise! Freud as escutou em seu sofrimento, descobriu com elas a transferência, inventou a psicanálise e deparou-se com os limites do analisável. Mas, do que falavam as histéricas? Fazendo a associação livre, as cadeias de linguagem, as levavam a falar de seu passado, na forma de reminiscências soltas, ou encadeadas, reminiscências de infância, reminiscências sexuais, dos momentos de trauma, de seus desejos incestuosos. Logo, falar era então recordar acontecimentos importantes do passado que o paciente relacionava às questões de sexo e morte. Acontecimentos importantes que muitas vezes “apareciam” como banais e por trás desses sintomas, Freud viu então que ali estavam sempre as questões do sujeito, com suas feições próprias, ou seja, pessoas diferentes tem reações diferentes diante do mesmo acontecimento. Freud se dá conta então que a histérica não esconde algo do outro, mas sim dela mesma, e que a dimensão disso é, maior para ela do que para o outro, ou seja, de uma idéia de um esquecimento intencional, Freud chegará à conclusão de que existe uma motivação inconsciente.
No entanto, chegar as lembranças não é uma tarefa fácil, implicava em atravessar obstáculos, atravessar a “resistência a rememoração”. É quando Freud percebe que quando o sujeito chega próximo de algumas lembranças ele interrompe a rememoração e é esse obstáculo que levará Freud e pensar no recalque. Que acaba se tornando um dos conceitos fundamentais da psicanálise além de nos permitir abrir várias portas e é tentando entender o mecanismo do recalque que Freud descobre o inconsciente e que também o conduz ao reconhecimento da sexualidade. No texto “O projeto de uma psicologia para neurólogos”, Freud nos diz que é pelo fato de existir um trauma anterior que as experiências recentes têm efeito traumático.
O traumático para nós, não será a cena acontecida, o que pode ter acontecido conosco, mas a lembrança da cena, que num momento posterior é capaz de desprender excitação, logo, é a lembrança que nos traumatiza. Perante a ameaça de lembrar de algo ameaçador nos defendemos e fazemos isso recalcando essa lembrança. E do que nos defendemos? O que recalcamos? O conteúdo recalcado é da ordem do sexual! Esta é uma afirmação que Freud fará do começo ao fim de sua obra e é por meio da teoria de sedução que Freud vai estabelecer a relação que existe entre o sexual e o recalque.
Em “Novos comentários sobre as neuropsicoses de defesa” de 1896, vemos que existem traumas na infância que são resultados da experiência de sedução por parte de um adulto ou por parte de alguma criança que pode ter sido seduzida por um adulto, os cuidadores em geral estão sempre presente nos relatos clínicos da época, freqüentemente encobridos pela figura de um pai abusador. E a cena de “sedução” é tida como se realmente tivesse acontecido. A entrada da sexualidade no mundo infantil possui um impacto que traumatiza, mesmo que sua manifestação sintomática possa vir a aparecer com o tempo.
Em 1905, nos “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”, Freud nos revela uma sexualidade infantil com seus componentes, que são as pulsões parciais, que constituem o “pequeno perverso polimorfo” que se expressa em desejos infantis entrelaçados em fantasias recalcadas, assim descobriu-se a importância da fantasia, fazendo a balança, na etiologia das neuroses e consequentemente na sua cura, pender para o lado do trabalho subjetivo, da responsabilidade do sujeito pelo que lhe acontece. As fantasias passam, assim, a ser o que está na base dos sintomas neuróticos e o que se manifesta de maneira disfarçada nos devaneios e nos sonhos.
A infância é o tempo que ocorrem os primeiros encontros e desencontros, as primeiras perguntas que darão a forma da criança no adulto, a criança que esse adulto um dia terá sido. Ficamos adultos e chegamos na “idade da razão”, mas, no entanto, o sujeito irá buscar numa infância passada a suposta razão. E o que nós lembramos de nossa infância? Muito pouco! Vejamos o que Freud nos diz sobre isso:
“De fato, somos informados de que, durante esses anos, dos quais só preservamos na memória algumas lembranças incompreensíveis e fragmentadas, reagíamos com vivacidade frente às impressões, sabíamos expressar dor e alegria de maneira humana, mostrávamos amor, ciúme e outras paixões que então nos agitavam violentamente, e até formulávamos frases que eram registradas pelos adultos como uma boa prova de discernimento e de uma capacidade incipiente de julgamento. E de tudo isso, quando adultos, nada sabemos por nós mesmos. Por que terá nossa memória ficado tão para trás em relação a nossas outras atividades anímicas? Ora, temos razões para crer que em nenhuma outra época da vida a capacidade de recepção e reprodução é maior do que justamente nos anos da infância.”(Freud, 1905, p. 164).
A psicanálise faz o sujeito falar e possibilita com que ele dê voz à criança que um dia ele foi e que estava no esquecimento. Então podemos dizer que as reminiscências que sofrem os pacientes histéricos são reminiscências infantis, trata-se então de um desejo infantil. É a criança que o homem um dia foi que ele retorna quando se sente desamparado no seu mal-estar, na sua angustia e então é instigado a falar de sua dor. A criança a que as reminiscências conduzem o sujeito é aquela criança que teve que se posicionar de alguma forma neste mundo, para esse Outro, e que se deparou com as suas dificuldades.
Na carta 69 a Fliess, datada de 21 de setembro de 1897, p 309, Freud diz: “Não acredito mais em minha neurótica (teoria das neuroses)”. Freud, aqui volta atrás em sua teoria e diz que as cenas de sedução relatadas por seus pacientes não tinham na verdade ocorrido, eram fantasias de sedução construídas por elas mesmas!! Em “Estudo autobiográfico” Freud nos fala que “os sintomas neuróticos não se enlaçavam de maneira direta a vivências efetivamente vividas, mas sim, a fantasias de desejo, e que, para a produção das neuroses tinha mais valor a realidade psíquica do que a material” (1924 a, p33). Mas é só em 1931, em “Sobre a sexualidade feminina” que Freud dirá que estas fantasias originariamente se vinculam com a sedução exercida pela mãe que se dá através dos cuidados com seu bebê.
É assim que pela primeira vez no interior dessas fantasias, Freud se depara com o complexo de Édipo, que alguns anos mais tarde vai ser o centro do complexo nodal das neuroses, dentro desta concepção da sexualidade, não se falará mais de um tempo pré-sexual, mas da sexualidade infantil operada pelo recalque da latência e o seu reaparecimento na puberdade. Ao complexo de Édipo junta-se ainda o complexo de castração, que juntos vão adquirir uma significação fundamental na formação da neurose. Mas, falaremos sobre isso em outro post!
É assim então que Freud descobriria, no próprio ato de fundação da psicanálise, ouvindo seus pacientes histéricos, as sua reminiscências, que o sintoma psíquico tem um sentido, um sentido inconsciente que lhes escapa, mas que tem um significado que é a expressão inconsciente do desejo do sujeito. Freud descobriu na clínica, ouvindo seus pacientes e na sua análise pessoal que a experiência do inconsciente é uma experiência de linguagem, pois esse sentido inconsciente do sintoma psíquico relaciona-se com a sua história, com suas questões, com seus desejos e este é indestrutível, é sexual e é infantil e diz respeito aos primeiros amores incestuosos do sujeito, desligados da consciência através do recalque.
O método de Freud não limitava-se a uma prática terapêutica, estava localizada no conhecimento, do fato de se estabelecer um sentido e portanto, da interpretação. Desta forma é que desde o início a sua experiência clínica, gira em torno do saber, na oposição entre a lembrança e o esquecimento é assim que Freud conduz e é assim que ele nos revela uma frase que é um clássico da psicanálise: “A histérica sofre de reminiscências” (Breuer; Freud, 1895).

Obs: Vocês viram que fiz questão de colocar em negrito a  parte onde digo que Freud volta atrás em sua teoria? Pois bem, fiz isso, pois sempre que Freud achava que não estava certo ele voltava e "consertava" o que achava necessário! O leitor de sua obra sabe que ele nos brindou não somente com seus sucessos mas também com seus "fracassos" que ainda hoje nos norteia
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
FREUD & BREUER, Sigmund & Joseph. Sobre o mecanismo psíquico dos fenômenos histéricos: comunicação preliminar(1893). Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud Vol.II. Rio de Janeiro. Imago, 1996.
______. (1895). Estudos sobre a histeria. Edição standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud, vol. IX. Rio de Janeiro: Imago, 1996. 
______. (1895). Projeto de uma psicologia para neurólogos. Edição standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud, vol. VII. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
Freud, S. (1896). Novos comentários sobre as neuropsicoses de defesa. Edição standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud, vol. III. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
______. (1896). A Etiologia da Histeria. Edição standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud, vol. III. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
______. “Carta 69 (1897)” Edição standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud, vol. III. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
______. (1905). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. Edição standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud, vol. VII. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
______. (1905). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. Edição standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud, vol. VII. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
_____. (1924). Um estudo autobiográfico. Edição standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud, vol. XX. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
_______. (1924). A dissolução do complexo de Édipo. Edição standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud, vol. XIX. Rio de Janeiro: Imago, 1996. 
______. (1931). Sexualidade feminina. Edição standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud, vol. XX. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

A casa verde de Foucault


Mas afinal, o que significa a palavra “normal” e a palavra “Loucura”? . Se formos procurar no dicionário Aurélio encontraremos que “Normal” significa:  conforme à norma; que é habitual; que é comum. Já a palavra “Loucura” , significa: Estado ou condição de louco; insanidade mental.  E por fim a palavra “Louco” significa: que perdeu a razão; doido; maluco; contrário à razão; insensato; dominado por paixão intensa, apaixonado.
Saúde e doença, normal e loucura, sanidade e enfermidade, são termos que se opõem ou se completam em seu significado mas que caminham juntos ao longo da historia do homem. Numa sucessão de mudanças e estágios, a manifestação da doença levou ao surgimento de ações de saúde ou modos de se combater a loucura, de se curar a doença.
Na antiguidade pré-clássica, as doenças eram explicadas pela força do sobrenatural e o sacerdote é o intermediário que , utilizando alguns recursos, como ervas, beberagens e medidas higiênicas, alcança pela intervenção da divindade, a prevenção, a cura ou a morte.
Somente a partir de 600 a.C, aproximadamente, é que, influenciada pelo racionalismo dos filósofos gregos da época, a medicina avança e começa a negar a intervenção dos demônios e deuses no surgimento e desenvolvimento das doenças.  Os filósofos gregos Platão e Aristóteles trouxeram em suas obras significativas contribuições para se compreender tanto a psicologia humana quanto as doenças mentais.
A humanidade evoluía. Ao longo dos séculos, seu pensamento acerca da manifestação e etiologia das doenças foi desenvolvendo formas de lidar com o enfermo, incluindo-se aí, portadores dos distúrbios mentais. Por cerca de oito séc. o racionalismo grego influenciou a arte de curar na Europa. Houve, entretanto, um retrocesso com a queda do Império Romano, o advento da Idade Média e a ascensão do Cristianismo enquanto força política e religiosa do Estado. O sobrenatural, a superstição e o misticismo ocupam o lugar da medicina racional.
Somente a partir do renascimento é que houve um retorno ao racionalismo científico.  Até meados do Séc.XVII, a loucura não tinha “status” de doença sistematizada e não se submetia ao controle e intervenção médica: “a loucura é no essencial experimentada em estado livre, ou seja, ela circula, faz parte do cenário e da linguagem comum, é para cada um uma experiência cotidiana que se procura mais exaltar do que dominar” ( Jornal Brasileiro de psiquiatria ;Vol 48; no. 2; 1999). Na metade do SécXVII, a loucura passa a ser vista como um elemento perturbador da ordem moral e social que precisa ser corrigida. A loucura é associada à ociosidade.
Surgiram então na França, na Alemanha e na Inglaterra as chamadas casas de internamento. Acolhiam além dos “loucos”, também criminosos, mendigos, inválidos, portadores de doenças venéreas, constituindo, na verdade um depósito de indesejados, dos excluídos socialmente. As casas de internamento foram um marco característico de um período que reage a tudo aquilo que se rebela à ordem moral, religiosa ou social vigente.
No Séc XVIII, a medicina não dispunha de critérios nosográficos unívocos para definir o que devia se definir como loucura. Tenta se libertar do pensamento renascentista buscando com avidez a verdade da ciência, logo, os cientistas da época chegam a conclusão que, a essência da alienação é um distúrbio de alguma função ou estrutura orgânica. É neste contexto que surge Phillippe Pinel. Pinel, não só libertou os loucos das correntes, mas também organizou as enfermidades mentais de forma classificatória a partir das observações que fazia de seus pacientes. Com Pinel nasce a Psiquiatria.
No Séc XIX, tivemos descobertas no campo da biologia, da física, da química, na anatomia, na neurologia, o que permitiu relacionar as doenças mentais com a patologia orgânica do cérebro. Os asilos foram substituídos pelos manicômios. Porém prevaleceu o tratamento moral, que, inclusive fora definido pelo próprio Pinel. Os métodos terapêuticos, muitos deles eram descontextualizados da patologia que lhe dava caução, tendo, portanto um caráter punitivo a serviço da persuasão moral: uso de sedativos, evacuantes, de irritantes, de tônicos e estimulantes e finalmente a hidroterapia com seus banhos quentes e frios, como a principal forma de tratamento. Posteriormente passou-se à utilização de espancamentos, celas fortes, gritos ameaças, métodos que perduraram até bem próximos de nossos dias.
A psiquiatria foi uma especialidade concebida dentro dos parâmetros de desenvolvimento da medicina enquanto ciência e profissão. Ela adquiriu reconhecimento como disciplina autônoma no século XVIII, com os trabalhos realizados por grandes nosólogos e psiquiatras, como Pinel, Tuke, Rush, que realizaram as primeiras classificações das hoje chamadas “doenças mentais”, influenciados que estavam pelo pensamento classificatório típico do empirismo, perspectiva dominante na ciência de então. A psiquiatria teve seu solo mais fértil na França, ganhando espaço nos Hospitais Gerais como a Salpêtrière e o Bicêtre, em Paris, quando da grande reforma hospitalar. Impregnada do espírito da época, tornou-se uma clínica de casos, corroborando para definir o indivíduo, definitivamente, como objeto científico.
            No Séc. XX, termos o início do desenvolvimento das áreas afins à psiquiatria e a psicologia, que a elas vão se vincular posteriormente na assistência ao doente mental. Em 1905 vemos o assistente social atuando em hospitais americanos. Nos anos 20 e 30 são relatados a existência de programas de terapia ocupacional com pacientes hospitalizados.
            Depois deste breve relato sobre a História da Loucura, lembro que começamos o texto falando sobre a loucura, sobre a ausência de saúde mental. Como vimos acima a saúde mental da forma que é concebida hoje, tem sua origem na psiquiatria e esta, por sua vez surgiu com a separação dos loucos do universo dos excluídos sociais e com a intervenção da medicina na assistência e tratamento dos insanos.
               Quem é louco ou quem é normal é um assunto que estimula discussões  infindáveis. Muitas vezes as pessoas afirmam num desabafo e por razões pejorativas que fulano é louco, outras vezes de acordo com certas conveniências, lançam mão da retórica cansativa sobre a impossibilidade de rotular-se alguém de louco, uma vez que a definição do normal é imprecisa. No entanto podemos dizer que na prática a atenção psicológica e o tratamento psiquiátrico são solicitados sempre que uma manifestação psíquica incomoda o sistema sócio-cultural e/ ou faz sofrer o indivíduo.
Percebe-se que com o passar dos tempos, uma preocupação em associar a normalidade à adaptação; adaptação ao mundo externo, adaptação às mudanças e ao novo. Além disso, falam também na associação da adaptação com a satisfação (felicidade e prazer) e adequação ao universo cultural, sem o qual o homem é nada. Finalmente, aparece a normalidade na ausência de sentimentos desagradáveis, como o medo, a culpa e a ansiedade, juntamente com uma qualidade valorativa, a responsabilidade.
Partindo deste princípio, acredito que não conheço ninguém normal, nem eu mesma, pois qual ser humano consegue viver sem medo, culpa e ansiedade, seguido de uma responsabilidade que se não for satisfatória poderá levar a uma culpa, uma ansiedade, um medo?
Segundo Foucault(1991), até o final do século XVII, razão e loucura não estavam ainda separadas. Loucura e sanidade, razão e “des-razão” estariam confusamente implicadas. Durante a Época Moderna, com o renascimento científico, buscou-se gradualmente cercar a loucura. Essa tendência se deu dentro de uma ordem absolutista. Foi assim que se deu a passagem da loucura na época medieval para a atual, que a limita dentro do estatuto de doença mental.
Para Foucault, a medicação da loucura, ou seja, a organização de um saber médico em torno dos indivíduos designados como loucos, esteve sempre ligada, a uma série de processos sociais e econômicos, mas também a instituições e a práticas de poder. No entanto, nada disso tira a validade científica ou mesmo a eficácia terapêutica da psiquiatria. Foucault se preocupa sim, com aquele encarregado de dizer a verdade. Uma modalidade de práticas estudadas por Foucault a esse respeito é a chamada prática confessional. Onde ressalta a autoridade do asilo e da clínica psicológica. Observa-se também multiplicação de “verdades” nas sociedades ocidentais. O que temos realmente são novos lugares e espaços, que procedem de antigas formas utilizadas nos primórdios da vida monástica cristã dos séculos III e IV d.C., mas também utilizados nas escolas helenísticas e greco-romanas.
            Nestas práticas confessionais o que vemos é o próprio sujeito que falando de si mesmo, logo neste caso é necessária uma dependência entre o sujeito que fala e um outro que escuta e encarrega-se de “interpretar” o enunciado: que é o caso do psiquiatra, do psicanalista. No entanto entre o psiquiatra e o “louco”, a verdade é dita dentro de uma oscilação, de uma astúcia de coerção e reconhecimento da loucura; entre o paciente e o psicanalista, ela é constituída no jogo da enunciação de si e da interpretação dos desejos. O papel do psiquiatra consiste em demandar daquele que verbaliza que trate de ser aquilo que ele diz e reconhece ser, ou seja, um pecador, um desviado, um louco.  O que o paciente diz sobre si é o que constitui a sujeição, a subjetividade cuja exigência é a produção de discursos racionais que conduzam à identidade verdadeira.
Para concluir podemos articular tudo o que foi exposto acima, sobre a História da e constituição da doença mental, a história da psicopatologia com a obra de Machado de Assis – “O alienista” (2006). Podemos observar ao longo da narrativa que Simão Bacamarte persegue incessantemente um objetivo. E qual era esse objetivo?  Descobrir as fronteiras entre a razão e a loucura, Pretende separar o reino da loucura do reino do perfeito juízo, mas a confusão em que ambas se misturam acaba aborrecendo o Doutor, que, para levar a efeito a seleção dos loucos, tem que saber o que é a normalidade. Assim, qualquer desvio do que era o comportamento médio, a aparência pública, qualquer movimento interior, que diferisse da norma da maioria era objeto de internação. O hospício é a Casa do Poder, e Machado de Assis sabia disso muito antes das teses de Foucault.
Há meu ver o que ele buscava mesmo era a glória, através de um “estudo da patologia cerebral”. Acredito que através de seu personagem principal (Simão bacamarte), Machado de Assis critica os cientistas de sua época, que, para ele, não tinham os conhecimentos suficientes e necessários. Esse conhecimento era uma gabolice, uma fanfarrice.  É Machado de Assis, desmascarando a hipocrisia humana. Mas esse não é o intuito de nosso trabalho.
 No começo, a inauguração do sanatório é comemorada pela população. Entretanto, as pessoas logo mudam de conduta e se revoltam contra Bacamarte, sua aprovação, seu salvo conduto para internar quem ele achasse que merecia de tratamento, cessa quando ele coloca, na Casa Verde, pessoas em cuja loucura a população não acredita.  Para Simão Bacamarte, o homem é considerado um caso que deve ser analisado cientificamente. Observamos então uma postura altamente cientificista que não vê o ser humano na sua integridade corpo, alma, inconsciente, consciente, enfim não vê o ser humano como sujeito.
Para Bacamarte, loucos são aqueles que apresentam um comportamento (anormal?) de acordo com o conhecimento da maioria. Então, numa primeira etapa, ele interna na Casa Verde todos os que, embora manifestassem hábitos ou atitudes discutíveis, eram tolerados pela sociedade: os politicamente volúveis, os sem opiniões próprias, os mentirosos, os falastrões, os poetas que viviam escrevendo versos empolados, os vaidosos. Dizia que "A razão é o perfeito equilíbrio de todas as faculdades, fora daí, insânia, insânia e só insânia." Em um dado momento de suas “pesquisas” chegou a dizer que os loucos agora são os leais, os justos, os honestos e imparciais, dizia ainda que devia se admitir como normal o desequilíbrio das faculdades e como patológico, o seu equilíbrio. E por fim, chegou a dizer que o único ser perfeito de Itaguaí era ele próprio, Simão Bacamarte. Logo, somente ele deveria ir para a Casa Verde. Declara curados todos os loucos, solta-os todos e, reconhecendo-se como o único louco irremediável, o médico tranca-se na Casa Verde, onde morre alguns meses depois.
            Não está em questão, a natureza da loucura ou de alguma outra teoria científica. Não existe naquela cidade loucura alguma, com exceção da loucura de Bacamarte, que produz a raiz da loucura que é o que interessa a Machado de Assis: a grande loucura cientificista e positivista, que busca os limites entre razão e dês - razão. A loucura de se pleitear uma explicação exaustiva e racional para a "mente humana". Creio que está aí a origem e o fundamento dos direitos e privilégios que o Alienista a si concede. São os direitos e privilégios que o século concede à ciência, particularmente à ciência médica em sua busca da administração da vida. O Alienista, portanto, não se escolhe louco. É o próprio século que o constitui assim.
E é exatamente pela mobilidade com a qual se movem as demais personagens do Alienista que Machado vai construindo sua feroz crítica a sociedade. Uma sociedade movida por interesses mesquinhos – como no caso do boticário Crispin Soares ou do barbeiro Porfírio.           Antes de qualquer coisa, note-se que Machado utiliza-se da incessante busca pela ‘verdade científica’ como uma forma de criticar àqueles que encontravam na Ciência o álibi para toda e qualquer atitude. Ainda que sem razão.
Assim, chegamos ao projeto da Casa Verde. E no ambicioso tratado sobre a Loucura, de Simão Bacamarte. É aqui que se encerra a crítica machadiana: quem são os loucos? O que é a loucura? Se a Ciência é a resposta para muitas indagações humanas, vale aqui lembrar que nem sempre o homem sabe como percorrer o caminho das respostas. A personagem de Simão Bacamarte surge como uma síntese que mostra a impotência ou a arrogância (?) do homem que se apropria das leis da Ciência e que em nome delas comete equívocos, promove tragédias e injustiças.
O que era feito antigamente com os “loucos” como já vimos no texto acima? Será que a Casa verde (tirando a vontade de projeção de Bacamarte) não tinha a mesma intenção? E nós enquanto estudantes, professores e trabalhadores que atuam nesta área da saúde mental, essa não é a realidade que vimos e presenciamos ainda nos dias de hoje! As intenções dessas instituições eram e são as seguintes: isolar o louco da sociedade; organizar o espaço interno da instituição, possibilitando uma distribuição regular e ordenada dos doentes; vigiá-los em todos os momentos e em todos os lugares, através dos médicos, enfermeiros, serventes...; distribuir seu tempo, submetendo-os à realidade do trabalho como principal norma terapêutica (aqui podemos frisar que nem sempre encontraremos esse tipo de estrutura a ser oferecida para essas pessoas). Assim, por sua estrutura e funcionamento, o hospital psiquiátrico deve ser um operador de transformação dos indivíduos: deve agir sobre os que abriga, atingir seu corpo, modificar o comportamento.
Portanto, voltamos para Foucault(1991), é uma máquina de poder, resultado de uma luta médica e política que impõe, cada vez com mais peso, a presença normalizadora da medicina como uma das características essenciais da sociedade capitalista. Vale lembrar que os “pacientes” de um hospital psiquiátrico sofrem muito com relação, a questão da subordinação dos psicólogos aos médicos, à ignorância ou maldade dos enfermeiros, ao processo de internação, à falta de uma lei nacional e de um serviço de assistência organizado pelo Estado que lhes faça valer seus direitos como seres humanos.
Foucault, procurava chamar atenção para dois pontos: por um lado, se a medicina mental apresenta a cura como sua aquisição científica, até hoje nunca deixou de reconhecer o seu lado negro: só se entra no hospício para não sair ou, na melhor das hipóteses, para logo depois voltar. Por outro lado, essa reconhecida incapacidade terapêutica, longe de pôr em questão a própria psiquiatria, serve de apoio a uma exigência de maior medicalização da sociedade. Faz a psiquiatria refinar seus conceitos para atingir novas faixas da população - numa evolução que vai do doente mental ao anormal e do anormal ao próprio normal -, tornando a sociedade uma espécie de asilo sem fronteiras, um asilo ilimitado.
Desde os primórdios da humanidade, a loucura, assim como o amor e o ódio, é uma sombra que observa com atenção o homem. É um tema fascinante, ela alimenta a fúria enciumada de Orfeu (shakespeare) ou os delírios cavalheirescos de Dom Quixote. E seguindo esses passos, nos lembramos de Van Gogh que decepou a própria orelha. E foi graças a ela (a loucura) , que se encontrou a justificativa para encerrar num sanatório a fabulosa escultora Camille Claudel. No mundo real ou na ficção, a loucura se faz presente. E se nos românticos ela surgia como uma das alternativas trágicas (assim como o álcool, o degredo e a morte) que encerrava o destino de personagens que se mantinham fiéis a sentimentos nobres, no realismo de Machado de Assis, ela surge como uma força completamente estranha ao homem que o força a se confrontar com uma realidade – econômica e comercial – que o coloca em risco diante de todas as suas certezas.
A História mostra que para todo provérbio popular há uma situação que anterior o justifica. E se é verdade que a loucura nos observa furtivamente, talvez encontremos na rude figura do alienista Simão Bacamarte a explicação para um ditado popular que se houve até nos dias de hoje: “de médico e louco, todo mundo tem um pouco”.

Referências Bibliográficas
ASSIS, Machado de. O Alienista. São Paulo: Ed.Moderna, 2006.
Beauchesne, H. – História da Psicopatologia, Martins Fontes, São Paulo, 1989;
FOUCAULT, M. “A constituição histórica da doença mental”. In: FOUCAULT, M. Doença mental e psicologia. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1991.
FOUCAULT, Michel. História da Loucura. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1985
Pessotti, Isaias. O século dos manicômios. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1996.
Jornal Brasileiro de psiquiatria ;Vol 48; no. 2; São Paulo.1999.