quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

A casa verde de Foucault


Mas afinal, o que significa a palavra “normal” e a palavra “Loucura”? . Se formos procurar no dicionário Aurélio encontraremos que “Normal” significa:  conforme à norma; que é habitual; que é comum. Já a palavra “Loucura” , significa: Estado ou condição de louco; insanidade mental.  E por fim a palavra “Louco” significa: que perdeu a razão; doido; maluco; contrário à razão; insensato; dominado por paixão intensa, apaixonado.
Saúde e doença, normal e loucura, sanidade e enfermidade, são termos que se opõem ou se completam em seu significado mas que caminham juntos ao longo da historia do homem. Numa sucessão de mudanças e estágios, a manifestação da doença levou ao surgimento de ações de saúde ou modos de se combater a loucura, de se curar a doença.
Na antiguidade pré-clássica, as doenças eram explicadas pela força do sobrenatural e o sacerdote é o intermediário que , utilizando alguns recursos, como ervas, beberagens e medidas higiênicas, alcança pela intervenção da divindade, a prevenção, a cura ou a morte.
Somente a partir de 600 a.C, aproximadamente, é que, influenciada pelo racionalismo dos filósofos gregos da época, a medicina avança e começa a negar a intervenção dos demônios e deuses no surgimento e desenvolvimento das doenças.  Os filósofos gregos Platão e Aristóteles trouxeram em suas obras significativas contribuições para se compreender tanto a psicologia humana quanto as doenças mentais.
A humanidade evoluía. Ao longo dos séculos, seu pensamento acerca da manifestação e etiologia das doenças foi desenvolvendo formas de lidar com o enfermo, incluindo-se aí, portadores dos distúrbios mentais. Por cerca de oito séc. o racionalismo grego influenciou a arte de curar na Europa. Houve, entretanto, um retrocesso com a queda do Império Romano, o advento da Idade Média e a ascensão do Cristianismo enquanto força política e religiosa do Estado. O sobrenatural, a superstição e o misticismo ocupam o lugar da medicina racional.
Somente a partir do renascimento é que houve um retorno ao racionalismo científico.  Até meados do Séc.XVII, a loucura não tinha “status” de doença sistematizada e não se submetia ao controle e intervenção médica: “a loucura é no essencial experimentada em estado livre, ou seja, ela circula, faz parte do cenário e da linguagem comum, é para cada um uma experiência cotidiana que se procura mais exaltar do que dominar” ( Jornal Brasileiro de psiquiatria ;Vol 48; no. 2; 1999). Na metade do SécXVII, a loucura passa a ser vista como um elemento perturbador da ordem moral e social que precisa ser corrigida. A loucura é associada à ociosidade.
Surgiram então na França, na Alemanha e na Inglaterra as chamadas casas de internamento. Acolhiam além dos “loucos”, também criminosos, mendigos, inválidos, portadores de doenças venéreas, constituindo, na verdade um depósito de indesejados, dos excluídos socialmente. As casas de internamento foram um marco característico de um período que reage a tudo aquilo que se rebela à ordem moral, religiosa ou social vigente.
No Séc XVIII, a medicina não dispunha de critérios nosográficos unívocos para definir o que devia se definir como loucura. Tenta se libertar do pensamento renascentista buscando com avidez a verdade da ciência, logo, os cientistas da época chegam a conclusão que, a essência da alienação é um distúrbio de alguma função ou estrutura orgânica. É neste contexto que surge Phillippe Pinel. Pinel, não só libertou os loucos das correntes, mas também organizou as enfermidades mentais de forma classificatória a partir das observações que fazia de seus pacientes. Com Pinel nasce a Psiquiatria.
No Séc XIX, tivemos descobertas no campo da biologia, da física, da química, na anatomia, na neurologia, o que permitiu relacionar as doenças mentais com a patologia orgânica do cérebro. Os asilos foram substituídos pelos manicômios. Porém prevaleceu o tratamento moral, que, inclusive fora definido pelo próprio Pinel. Os métodos terapêuticos, muitos deles eram descontextualizados da patologia que lhe dava caução, tendo, portanto um caráter punitivo a serviço da persuasão moral: uso de sedativos, evacuantes, de irritantes, de tônicos e estimulantes e finalmente a hidroterapia com seus banhos quentes e frios, como a principal forma de tratamento. Posteriormente passou-se à utilização de espancamentos, celas fortes, gritos ameaças, métodos que perduraram até bem próximos de nossos dias.
A psiquiatria foi uma especialidade concebida dentro dos parâmetros de desenvolvimento da medicina enquanto ciência e profissão. Ela adquiriu reconhecimento como disciplina autônoma no século XVIII, com os trabalhos realizados por grandes nosólogos e psiquiatras, como Pinel, Tuke, Rush, que realizaram as primeiras classificações das hoje chamadas “doenças mentais”, influenciados que estavam pelo pensamento classificatório típico do empirismo, perspectiva dominante na ciência de então. A psiquiatria teve seu solo mais fértil na França, ganhando espaço nos Hospitais Gerais como a Salpêtrière e o Bicêtre, em Paris, quando da grande reforma hospitalar. Impregnada do espírito da época, tornou-se uma clínica de casos, corroborando para definir o indivíduo, definitivamente, como objeto científico.
            No Séc. XX, termos o início do desenvolvimento das áreas afins à psiquiatria e a psicologia, que a elas vão se vincular posteriormente na assistência ao doente mental. Em 1905 vemos o assistente social atuando em hospitais americanos. Nos anos 20 e 30 são relatados a existência de programas de terapia ocupacional com pacientes hospitalizados.
            Depois deste breve relato sobre a História da Loucura, lembro que começamos o texto falando sobre a loucura, sobre a ausência de saúde mental. Como vimos acima a saúde mental da forma que é concebida hoje, tem sua origem na psiquiatria e esta, por sua vez surgiu com a separação dos loucos do universo dos excluídos sociais e com a intervenção da medicina na assistência e tratamento dos insanos.
               Quem é louco ou quem é normal é um assunto que estimula discussões  infindáveis. Muitas vezes as pessoas afirmam num desabafo e por razões pejorativas que fulano é louco, outras vezes de acordo com certas conveniências, lançam mão da retórica cansativa sobre a impossibilidade de rotular-se alguém de louco, uma vez que a definição do normal é imprecisa. No entanto podemos dizer que na prática a atenção psicológica e o tratamento psiquiátrico são solicitados sempre que uma manifestação psíquica incomoda o sistema sócio-cultural e/ ou faz sofrer o indivíduo.
Percebe-se que com o passar dos tempos, uma preocupação em associar a normalidade à adaptação; adaptação ao mundo externo, adaptação às mudanças e ao novo. Além disso, falam também na associação da adaptação com a satisfação (felicidade e prazer) e adequação ao universo cultural, sem o qual o homem é nada. Finalmente, aparece a normalidade na ausência de sentimentos desagradáveis, como o medo, a culpa e a ansiedade, juntamente com uma qualidade valorativa, a responsabilidade.
Partindo deste princípio, acredito que não conheço ninguém normal, nem eu mesma, pois qual ser humano consegue viver sem medo, culpa e ansiedade, seguido de uma responsabilidade que se não for satisfatória poderá levar a uma culpa, uma ansiedade, um medo?
Segundo Foucault(1991), até o final do século XVII, razão e loucura não estavam ainda separadas. Loucura e sanidade, razão e “des-razão” estariam confusamente implicadas. Durante a Época Moderna, com o renascimento científico, buscou-se gradualmente cercar a loucura. Essa tendência se deu dentro de uma ordem absolutista. Foi assim que se deu a passagem da loucura na época medieval para a atual, que a limita dentro do estatuto de doença mental.
Para Foucault, a medicação da loucura, ou seja, a organização de um saber médico em torno dos indivíduos designados como loucos, esteve sempre ligada, a uma série de processos sociais e econômicos, mas também a instituições e a práticas de poder. No entanto, nada disso tira a validade científica ou mesmo a eficácia terapêutica da psiquiatria. Foucault se preocupa sim, com aquele encarregado de dizer a verdade. Uma modalidade de práticas estudadas por Foucault a esse respeito é a chamada prática confessional. Onde ressalta a autoridade do asilo e da clínica psicológica. Observa-se também multiplicação de “verdades” nas sociedades ocidentais. O que temos realmente são novos lugares e espaços, que procedem de antigas formas utilizadas nos primórdios da vida monástica cristã dos séculos III e IV d.C., mas também utilizados nas escolas helenísticas e greco-romanas.
            Nestas práticas confessionais o que vemos é o próprio sujeito que falando de si mesmo, logo neste caso é necessária uma dependência entre o sujeito que fala e um outro que escuta e encarrega-se de “interpretar” o enunciado: que é o caso do psiquiatra, do psicanalista. No entanto entre o psiquiatra e o “louco”, a verdade é dita dentro de uma oscilação, de uma astúcia de coerção e reconhecimento da loucura; entre o paciente e o psicanalista, ela é constituída no jogo da enunciação de si e da interpretação dos desejos. O papel do psiquiatra consiste em demandar daquele que verbaliza que trate de ser aquilo que ele diz e reconhece ser, ou seja, um pecador, um desviado, um louco.  O que o paciente diz sobre si é o que constitui a sujeição, a subjetividade cuja exigência é a produção de discursos racionais que conduzam à identidade verdadeira.
Para concluir podemos articular tudo o que foi exposto acima, sobre a História da e constituição da doença mental, a história da psicopatologia com a obra de Machado de Assis – “O alienista” (2006). Podemos observar ao longo da narrativa que Simão Bacamarte persegue incessantemente um objetivo. E qual era esse objetivo?  Descobrir as fronteiras entre a razão e a loucura, Pretende separar o reino da loucura do reino do perfeito juízo, mas a confusão em que ambas se misturam acaba aborrecendo o Doutor, que, para levar a efeito a seleção dos loucos, tem que saber o que é a normalidade. Assim, qualquer desvio do que era o comportamento médio, a aparência pública, qualquer movimento interior, que diferisse da norma da maioria era objeto de internação. O hospício é a Casa do Poder, e Machado de Assis sabia disso muito antes das teses de Foucault.
Há meu ver o que ele buscava mesmo era a glória, através de um “estudo da patologia cerebral”. Acredito que através de seu personagem principal (Simão bacamarte), Machado de Assis critica os cientistas de sua época, que, para ele, não tinham os conhecimentos suficientes e necessários. Esse conhecimento era uma gabolice, uma fanfarrice.  É Machado de Assis, desmascarando a hipocrisia humana. Mas esse não é o intuito de nosso trabalho.
 No começo, a inauguração do sanatório é comemorada pela população. Entretanto, as pessoas logo mudam de conduta e se revoltam contra Bacamarte, sua aprovação, seu salvo conduto para internar quem ele achasse que merecia de tratamento, cessa quando ele coloca, na Casa Verde, pessoas em cuja loucura a população não acredita.  Para Simão Bacamarte, o homem é considerado um caso que deve ser analisado cientificamente. Observamos então uma postura altamente cientificista que não vê o ser humano na sua integridade corpo, alma, inconsciente, consciente, enfim não vê o ser humano como sujeito.
Para Bacamarte, loucos são aqueles que apresentam um comportamento (anormal?) de acordo com o conhecimento da maioria. Então, numa primeira etapa, ele interna na Casa Verde todos os que, embora manifestassem hábitos ou atitudes discutíveis, eram tolerados pela sociedade: os politicamente volúveis, os sem opiniões próprias, os mentirosos, os falastrões, os poetas que viviam escrevendo versos empolados, os vaidosos. Dizia que "A razão é o perfeito equilíbrio de todas as faculdades, fora daí, insânia, insânia e só insânia." Em um dado momento de suas “pesquisas” chegou a dizer que os loucos agora são os leais, os justos, os honestos e imparciais, dizia ainda que devia se admitir como normal o desequilíbrio das faculdades e como patológico, o seu equilíbrio. E por fim, chegou a dizer que o único ser perfeito de Itaguaí era ele próprio, Simão Bacamarte. Logo, somente ele deveria ir para a Casa Verde. Declara curados todos os loucos, solta-os todos e, reconhecendo-se como o único louco irremediável, o médico tranca-se na Casa Verde, onde morre alguns meses depois.
            Não está em questão, a natureza da loucura ou de alguma outra teoria científica. Não existe naquela cidade loucura alguma, com exceção da loucura de Bacamarte, que produz a raiz da loucura que é o que interessa a Machado de Assis: a grande loucura cientificista e positivista, que busca os limites entre razão e dês - razão. A loucura de se pleitear uma explicação exaustiva e racional para a "mente humana". Creio que está aí a origem e o fundamento dos direitos e privilégios que o Alienista a si concede. São os direitos e privilégios que o século concede à ciência, particularmente à ciência médica em sua busca da administração da vida. O Alienista, portanto, não se escolhe louco. É o próprio século que o constitui assim.
E é exatamente pela mobilidade com a qual se movem as demais personagens do Alienista que Machado vai construindo sua feroz crítica a sociedade. Uma sociedade movida por interesses mesquinhos – como no caso do boticário Crispin Soares ou do barbeiro Porfírio.           Antes de qualquer coisa, note-se que Machado utiliza-se da incessante busca pela ‘verdade científica’ como uma forma de criticar àqueles que encontravam na Ciência o álibi para toda e qualquer atitude. Ainda que sem razão.
Assim, chegamos ao projeto da Casa Verde. E no ambicioso tratado sobre a Loucura, de Simão Bacamarte. É aqui que se encerra a crítica machadiana: quem são os loucos? O que é a loucura? Se a Ciência é a resposta para muitas indagações humanas, vale aqui lembrar que nem sempre o homem sabe como percorrer o caminho das respostas. A personagem de Simão Bacamarte surge como uma síntese que mostra a impotência ou a arrogância (?) do homem que se apropria das leis da Ciência e que em nome delas comete equívocos, promove tragédias e injustiças.
O que era feito antigamente com os “loucos” como já vimos no texto acima? Será que a Casa verde (tirando a vontade de projeção de Bacamarte) não tinha a mesma intenção? E nós enquanto estudantes, professores e trabalhadores que atuam nesta área da saúde mental, essa não é a realidade que vimos e presenciamos ainda nos dias de hoje! As intenções dessas instituições eram e são as seguintes: isolar o louco da sociedade; organizar o espaço interno da instituição, possibilitando uma distribuição regular e ordenada dos doentes; vigiá-los em todos os momentos e em todos os lugares, através dos médicos, enfermeiros, serventes...; distribuir seu tempo, submetendo-os à realidade do trabalho como principal norma terapêutica (aqui podemos frisar que nem sempre encontraremos esse tipo de estrutura a ser oferecida para essas pessoas). Assim, por sua estrutura e funcionamento, o hospital psiquiátrico deve ser um operador de transformação dos indivíduos: deve agir sobre os que abriga, atingir seu corpo, modificar o comportamento.
Portanto, voltamos para Foucault(1991), é uma máquina de poder, resultado de uma luta médica e política que impõe, cada vez com mais peso, a presença normalizadora da medicina como uma das características essenciais da sociedade capitalista. Vale lembrar que os “pacientes” de um hospital psiquiátrico sofrem muito com relação, a questão da subordinação dos psicólogos aos médicos, à ignorância ou maldade dos enfermeiros, ao processo de internação, à falta de uma lei nacional e de um serviço de assistência organizado pelo Estado que lhes faça valer seus direitos como seres humanos.
Foucault, procurava chamar atenção para dois pontos: por um lado, se a medicina mental apresenta a cura como sua aquisição científica, até hoje nunca deixou de reconhecer o seu lado negro: só se entra no hospício para não sair ou, na melhor das hipóteses, para logo depois voltar. Por outro lado, essa reconhecida incapacidade terapêutica, longe de pôr em questão a própria psiquiatria, serve de apoio a uma exigência de maior medicalização da sociedade. Faz a psiquiatria refinar seus conceitos para atingir novas faixas da população - numa evolução que vai do doente mental ao anormal e do anormal ao próprio normal -, tornando a sociedade uma espécie de asilo sem fronteiras, um asilo ilimitado.
Desde os primórdios da humanidade, a loucura, assim como o amor e o ódio, é uma sombra que observa com atenção o homem. É um tema fascinante, ela alimenta a fúria enciumada de Orfeu (shakespeare) ou os delírios cavalheirescos de Dom Quixote. E seguindo esses passos, nos lembramos de Van Gogh que decepou a própria orelha. E foi graças a ela (a loucura) , que se encontrou a justificativa para encerrar num sanatório a fabulosa escultora Camille Claudel. No mundo real ou na ficção, a loucura se faz presente. E se nos românticos ela surgia como uma das alternativas trágicas (assim como o álcool, o degredo e a morte) que encerrava o destino de personagens que se mantinham fiéis a sentimentos nobres, no realismo de Machado de Assis, ela surge como uma força completamente estranha ao homem que o força a se confrontar com uma realidade – econômica e comercial – que o coloca em risco diante de todas as suas certezas.
A História mostra que para todo provérbio popular há uma situação que anterior o justifica. E se é verdade que a loucura nos observa furtivamente, talvez encontremos na rude figura do alienista Simão Bacamarte a explicação para um ditado popular que se houve até nos dias de hoje: “de médico e louco, todo mundo tem um pouco”.

Referências Bibliográficas
ASSIS, Machado de. O Alienista. São Paulo: Ed.Moderna, 2006.
Beauchesne, H. – História da Psicopatologia, Martins Fontes, São Paulo, 1989;
FOUCAULT, M. “A constituição histórica da doença mental”. In: FOUCAULT, M. Doença mental e psicologia. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1991.
FOUCAULT, Michel. História da Loucura. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1985
Pessotti, Isaias. O século dos manicômios. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1996.
Jornal Brasileiro de psiquiatria ;Vol 48; no. 2; São Paulo.1999.



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