terça-feira, 24 de abril de 2012

Um Método Perigoso



Na primeira cena do filme, temos uma linda paisagem da Suíça que contrasta com o comportamento feroz de uma moça que grita, ri e se contorce dentro de uma carruagem, enquanto dois homens tentam controlá-la. Essa moça é Sabina Spielrein, judia russa de 19 anos, nascida em uma rica família, é internada no Hospital Burgholzli em Zurich (um dos melhores da Europa) em 1904. Keira Knightley é Sabina Spilrein. Um pouco exagerada nos tiques e contorsões no início do filme, dá vida a jovem que se cura dos traumas do passado e se torna uma das primeiras mulheres psicanalistas freudianas.

Em Um Método Perigoso, o último filme de David Cronenberg, os traços que caracterizaram o autor nos seus quase vinte filmes anteriores não aparecem de maneira tão acentuada. No entanto, uma outra característica fundamental pertencente ao diretor se faz presente: a mente humana, sua capacidade criadora,  e as entrelinhas que engendram a formação do sujeito a partir do outro das relações que trava e que o espelham. Cronenberg dirige com sutileza. A grandiosidade do filme está no seu pano de fundo, nos personagens célebres: Freud e Jung e também em Sabina Spielrein. Cronenberg se curva a eles e os retrata de uma maneira tão neutra, tão clássica que nem parece Cronenberg. Michael Fassbender e Vigo Mortensen são Carl Jung e Sigmund Freud. Excelentes atores mas distantes dos personagens reais.

Carl Gustav Jung, suíço, 30 anos, era médico no hospital onde Sabina foi internada como histérica. Ele era um homem alto e forte. Casado com uma mulher riquíssima, morava bem e não dependia de seu trabalho para sobreviver. No palco principal, os dois personagens, Sabina e Jung, se aproximam através do método criado por Freud, judeu nascido na Áustria, o pai da psicanálise, fundada em 1900, quando da publicação de seu livro “A Interpretação dos Sonhos”. E ao contrário de Jung, Freud já tinha fama mas vivia sem luxos, com a mulher, a cunhada e seis filhos num apartamento de classe média em Viena.

Para os que não sabem do se trata o filme, um breve parênteses: Um Método Perigoso  nos fala de Psicanalise a partir da relação de Jung com a sua paciente mais famosa, Sabina Spielrein, que depois se tornaria sua amante e colega de profissão e das relações deste com o seu mestre, Freud, com o qual romperia alguns anos depois.

Jung era estudioso do comportamento humano, fazia pesquisas nessa área mas não conhecia Freud pessoalmente. E tudo começa quando Sabina torna-se sua primeira paciente a ser tratada através da “talking cure” ou seja, um tentativa de cura onde é preciso que o paciente fale sobre os males que o afligem, método este criado por Freud. É bom lembrar que, nessa época, os doentes mentais que possuíam posses eram tratados com massagens,  banhos e outros métodos ineficazes. Aos pobres, restava apodrecer numa instituição pública. E nessa época a histeria era vista como uma doença mental.

Em 26 de outubro de 1906, Jung  escreve a Freud: “Trato no momento, utilizando seu método,de uma histérica. Caso difícil; uma estudante russa de 20 anos, doente há 6.” (in “Freud/ Jung-Correspondência Completa- Ed. Imago- p.47). A partir de então Freud e Jung passaram a se corresponder (359 cartas que posteriormente foram publicadas entre 1906 a 1913). O primeiro encontro entre eles, em 27de fevereiro de 1907, transformou-se numa conversa que durou treze horas ininterruptas. Depois deste encontro estabeleceram uma amizade de aproximadamente sete anos, durante a qual trocavam informações sobre seus sonhos, análises, trocavam confidências, discutiam casos clínicos.

É através de Sabina que os dois médicos se aproximam, trocam cartas e se visitam. Mas, Freud e Jung eram diferentes. O que os uniu, também os separou. Jung, desde o principio não simpatizava com o papel central que Freud dava à sexualidade nas neuroses. Mas, se aproxima dele, como quem trata com um mentor. E Jung por sua vez se interessava por áreas especulativas que pareciam superstições para Freud e isso era exatamente o que Freud não podia admitir em quem depositava a esperança de ser seu herdeiro. Mais, a quem pedia que o ajudasse a defender a nascente psicanálise, para que ela fosse vista com seriedade e aceita por círculos respeitados da academia. E, principalmente, Freud precisava de um ariano influente para levar a psicanálise a grupos mais amplos do que aquele que o cercava em Viena, constituído por médicos judeus.

Mas, Cronenberg não deixou de colocar sua assinatura. O que se conhece como rumores de um encantamento romântico entre Jung e sua paciente Sabina, transforma-se numa relação sado-masoquista, na qual Jung, amante cruel, dá a Sabina o que ela pede: surras misturadas a beijos e orgasmos. A menina que era espancada pelo pai e que transforma a dor em prazer para se defender, entrega-se agora, com paixão, ao homem que faz com que ela fale e relembre a excitação que sempre sentiu com experiências de humilhação.

As cenas imaginadas por Cronenberg, belamente eróticas, são uma “licença poética” que asseguram o seu jeito de ser cineasta. E aqui reside justamente o perigo do método analítico, quando o psicanalista mal formado esquece o lugar que ocupa e atua as fantasias do seu paciente ao invés de interpretá-las e nunca deixar de lembrar que não é amado ou detestado pelo que é, mas pelo que representa.
Larissa Nogueira
O professor da USP e Psicanalista Christian Dunker  deu uma entrevista a folha mostrando algumas coisas interessantes e explicando alguns conceitos psicanalíticos citados no filme.


Você ficou com a impressão de que o filme pende para a defesa de Freud e aponta os defeitos de Jung? Será que os junguianos vão ficar bravos? Você ficaria, se fosse junguiano?

Christian Dunker - O filme aborda com sobriedade uma das rupturas mais importantes e marcantes da história intelectual do século XX. Normalmente, essa ruptura é atribuída à resistência de Jung em aceitar que todos os sintomas envolvem a participação decisiva da sexualidade. Para o suíço, o conceito de libido devia ser pensado como “a totalidade da energia psíquica”, e não apenas como sinônimo das disposições sexuais. Para demonstrar sua ideia, Jung recorre fortemente aos mitos, à história das religiões e aos símbolos.

O filme acerta ao mostrar Freud tolerante e, na verdade, incentivador das teorias sobre a telepatia, o místico e a espiritualidade. Desde que elas não transgridam as regras da demonstração científica.

A grande novidade é mostrar que essa diferença teórica, algumas vezes retratada como uma incompatibilidade entre temperamentos, está permeada por uma querela pessoal. Para Freud, o grande erro de Jung foi ocultar seu relacionamento com Sabina, e não propriamente ter sido e infiel a sua esposa. Contudo, havia um conflito de gerações, um conflito entre o “príncipe da psicanálise” e o “pai da psicanálise” — e isso o filme deixa transparecer claramente.

O filme não demoniza Jung, mas mostra a gravidade de seu conflito e sua pequena disposição a enfrentá-lo naquele momento. O fato de que ele manteve amantes ao longo da vida, inclusive ex-pacientes, soa irônico para alguém que defendeu a não prioridade do conflito sexual.

É possível que muitos junguianos fiquem irritados com Cronenberg. Não porque ele favorece Freud, um grande adversário, afinal, mas porque mostra Jung sendo derrotado por um adversário que ele mesmo considerava de menor envergadura. Tirando as oposições teóricas geniais, afastando Freud do centro do ciclone que tomou a vida de Jung, o que sobra é um mito prosaico, humano.Mas há um elemento que fica sugerido no filme: a profundidade do abismo no qual a ruptura com Freud o colocou. Dessa crise pessoal emergirá o grande autor no qual Jung se transformou. Ou seja, talvez ele precisasse disso para se tornar o que era. “É preciso fazer coisas imperdoáveis para que uma vida valha a pena”, mostra o filme.

É condenável o envolvimento entre Sabina e Jung?

Hoje é indiscutível que certas coisas não devem acontecer entre pacientes e analistas, mas isso não significa existam papéis claros e distintos. Os riscos profissionais são inevitáveis, é por isso que somos profissionais do risco. Daí a pertinência do título Um método perigoso.

Por que mostrar Otto Gross no filme?

Otto era um psiquiatra delirante, viciado em cocaína, que acreditava que o mundo iria acabar se não conseguíssemos por em prática a liberação sexual e a crítica do patriarcalismo. Foi ele quem inspirou a descoberta da esquizofrenia (feita por Eugen Bleuler, médico de Sabina). Otto e Sabina esperam o mínimo dos que cuidam do sofrimento psíquico: tornar os pacientes aptos para a liberdade. Mas muita gente se esquece disso hoje em dia.

Mas por que Cronenberg foi se meter a fazer um filme paradão? Sem sangue, sem experiências malucas e mafiosos russos? E sem moscas?

Christian Dunker – Cronenberg fez seus melhores trabalhos justamente sobre o problema da dissolução do eu: Videodrome (1983), A mosca (1986), Gêmeos: mórbida semelhança (1988), Naked lunch (1991) e Spider (2002). E o filme todo trata dessa dissolução, processo vivido por Sabina e apontado em sua poderosa ideia de que a verdadeira sexualidade pede a destruição do ego.

A dissolução do eu significa que ela não pode ser reconhecida como mulher, como esposa, como médica, como alguém diferente de uma filha. Muitos quadros se caracterizam por uma perturbação da lógica do reconhecimento (depressão, mania, histeria, obsessão). Outros tantos podem ser alinhados com os problemas gerados por algo exterior (no caso das fobias).O que caracteriza o quadro de Sabina é a combinação entre os dois tipos de funcionamento, com sintomas dos dois tipos.

Ilustra muito bem isso a recordação na qual o pai de Sabina fazia com que ela beijasse sua mão (reconhecendo sua autoridade) antes que a mesma mão paterna a espancasse (como um objeto).

Suas conquistas na esfera do reconhecimento, propiciadas pela liberação de seu desejo de estudar, tornar-se psiquiatra, depois psicanalista (para o horror de Jung), associada à maternidade e ao casamento, podem sugerir a imagem de uma Sabina pacificada. Mas até onde pude acompanhar, isso está longe de representar a mulher que era, sobretudo, uma amante do conflito, não de sua solução.

Jung é genial porque percebe que a espasmódica e enlouquecida Sabina tem o grão de ousadia necessário para se tornar psiquiatra. A “loucura” de Sabina é a causa eficiente do filme. Alerta para a insanidade das fronteiras e para a força criativa que acompanha a destruição da individualidade.