quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

A casa verde de Foucault


Mas afinal, o que significa a palavra “normal” e a palavra “Loucura”? . Se formos procurar no dicionário Aurélio encontraremos que “Normal” significa:  conforme à norma; que é habitual; que é comum. Já a palavra “Loucura” , significa: Estado ou condição de louco; insanidade mental.  E por fim a palavra “Louco” significa: que perdeu a razão; doido; maluco; contrário à razão; insensato; dominado por paixão intensa, apaixonado.
Saúde e doença, normal e loucura, sanidade e enfermidade, são termos que se opõem ou se completam em seu significado mas que caminham juntos ao longo da historia do homem. Numa sucessão de mudanças e estágios, a manifestação da doença levou ao surgimento de ações de saúde ou modos de se combater a loucura, de se curar a doença.
Na antiguidade pré-clássica, as doenças eram explicadas pela força do sobrenatural e o sacerdote é o intermediário que , utilizando alguns recursos, como ervas, beberagens e medidas higiênicas, alcança pela intervenção da divindade, a prevenção, a cura ou a morte.
Somente a partir de 600 a.C, aproximadamente, é que, influenciada pelo racionalismo dos filósofos gregos da época, a medicina avança e começa a negar a intervenção dos demônios e deuses no surgimento e desenvolvimento das doenças.  Os filósofos gregos Platão e Aristóteles trouxeram em suas obras significativas contribuições para se compreender tanto a psicologia humana quanto as doenças mentais.
A humanidade evoluía. Ao longo dos séculos, seu pensamento acerca da manifestação e etiologia das doenças foi desenvolvendo formas de lidar com o enfermo, incluindo-se aí, portadores dos distúrbios mentais. Por cerca de oito séc. o racionalismo grego influenciou a arte de curar na Europa. Houve, entretanto, um retrocesso com a queda do Império Romano, o advento da Idade Média e a ascensão do Cristianismo enquanto força política e religiosa do Estado. O sobrenatural, a superstição e o misticismo ocupam o lugar da medicina racional.
Somente a partir do renascimento é que houve um retorno ao racionalismo científico.  Até meados do Séc.XVII, a loucura não tinha “status” de doença sistematizada e não se submetia ao controle e intervenção médica: “a loucura é no essencial experimentada em estado livre, ou seja, ela circula, faz parte do cenário e da linguagem comum, é para cada um uma experiência cotidiana que se procura mais exaltar do que dominar” ( Jornal Brasileiro de psiquiatria ;Vol 48; no. 2; 1999). Na metade do SécXVII, a loucura passa a ser vista como um elemento perturbador da ordem moral e social que precisa ser corrigida. A loucura é associada à ociosidade.
Surgiram então na França, na Alemanha e na Inglaterra as chamadas casas de internamento. Acolhiam além dos “loucos”, também criminosos, mendigos, inválidos, portadores de doenças venéreas, constituindo, na verdade um depósito de indesejados, dos excluídos socialmente. As casas de internamento foram um marco característico de um período que reage a tudo aquilo que se rebela à ordem moral, religiosa ou social vigente.
No Séc XVIII, a medicina não dispunha de critérios nosográficos unívocos para definir o que devia se definir como loucura. Tenta se libertar do pensamento renascentista buscando com avidez a verdade da ciência, logo, os cientistas da época chegam a conclusão que, a essência da alienação é um distúrbio de alguma função ou estrutura orgânica. É neste contexto que surge Phillippe Pinel. Pinel, não só libertou os loucos das correntes, mas também organizou as enfermidades mentais de forma classificatória a partir das observações que fazia de seus pacientes. Com Pinel nasce a Psiquiatria.
No Séc XIX, tivemos descobertas no campo da biologia, da física, da química, na anatomia, na neurologia, o que permitiu relacionar as doenças mentais com a patologia orgânica do cérebro. Os asilos foram substituídos pelos manicômios. Porém prevaleceu o tratamento moral, que, inclusive fora definido pelo próprio Pinel. Os métodos terapêuticos, muitos deles eram descontextualizados da patologia que lhe dava caução, tendo, portanto um caráter punitivo a serviço da persuasão moral: uso de sedativos, evacuantes, de irritantes, de tônicos e estimulantes e finalmente a hidroterapia com seus banhos quentes e frios, como a principal forma de tratamento. Posteriormente passou-se à utilização de espancamentos, celas fortes, gritos ameaças, métodos que perduraram até bem próximos de nossos dias.
A psiquiatria foi uma especialidade concebida dentro dos parâmetros de desenvolvimento da medicina enquanto ciência e profissão. Ela adquiriu reconhecimento como disciplina autônoma no século XVIII, com os trabalhos realizados por grandes nosólogos e psiquiatras, como Pinel, Tuke, Rush, que realizaram as primeiras classificações das hoje chamadas “doenças mentais”, influenciados que estavam pelo pensamento classificatório típico do empirismo, perspectiva dominante na ciência de então. A psiquiatria teve seu solo mais fértil na França, ganhando espaço nos Hospitais Gerais como a Salpêtrière e o Bicêtre, em Paris, quando da grande reforma hospitalar. Impregnada do espírito da época, tornou-se uma clínica de casos, corroborando para definir o indivíduo, definitivamente, como objeto científico.
            No Séc. XX, termos o início do desenvolvimento das áreas afins à psiquiatria e a psicologia, que a elas vão se vincular posteriormente na assistência ao doente mental. Em 1905 vemos o assistente social atuando em hospitais americanos. Nos anos 20 e 30 são relatados a existência de programas de terapia ocupacional com pacientes hospitalizados.
            Depois deste breve relato sobre a História da Loucura, lembro que começamos o texto falando sobre a loucura, sobre a ausência de saúde mental. Como vimos acima a saúde mental da forma que é concebida hoje, tem sua origem na psiquiatria e esta, por sua vez surgiu com a separação dos loucos do universo dos excluídos sociais e com a intervenção da medicina na assistência e tratamento dos insanos.
               Quem é louco ou quem é normal é um assunto que estimula discussões  infindáveis. Muitas vezes as pessoas afirmam num desabafo e por razões pejorativas que fulano é louco, outras vezes de acordo com certas conveniências, lançam mão da retórica cansativa sobre a impossibilidade de rotular-se alguém de louco, uma vez que a definição do normal é imprecisa. No entanto podemos dizer que na prática a atenção psicológica e o tratamento psiquiátrico são solicitados sempre que uma manifestação psíquica incomoda o sistema sócio-cultural e/ ou faz sofrer o indivíduo.
Percebe-se que com o passar dos tempos, uma preocupação em associar a normalidade à adaptação; adaptação ao mundo externo, adaptação às mudanças e ao novo. Além disso, falam também na associação da adaptação com a satisfação (felicidade e prazer) e adequação ao universo cultural, sem o qual o homem é nada. Finalmente, aparece a normalidade na ausência de sentimentos desagradáveis, como o medo, a culpa e a ansiedade, juntamente com uma qualidade valorativa, a responsabilidade.
Partindo deste princípio, acredito que não conheço ninguém normal, nem eu mesma, pois qual ser humano consegue viver sem medo, culpa e ansiedade, seguido de uma responsabilidade que se não for satisfatória poderá levar a uma culpa, uma ansiedade, um medo?
Segundo Foucault(1991), até o final do século XVII, razão e loucura não estavam ainda separadas. Loucura e sanidade, razão e “des-razão” estariam confusamente implicadas. Durante a Época Moderna, com o renascimento científico, buscou-se gradualmente cercar a loucura. Essa tendência se deu dentro de uma ordem absolutista. Foi assim que se deu a passagem da loucura na época medieval para a atual, que a limita dentro do estatuto de doença mental.
Para Foucault, a medicação da loucura, ou seja, a organização de um saber médico em torno dos indivíduos designados como loucos, esteve sempre ligada, a uma série de processos sociais e econômicos, mas também a instituições e a práticas de poder. No entanto, nada disso tira a validade científica ou mesmo a eficácia terapêutica da psiquiatria. Foucault se preocupa sim, com aquele encarregado de dizer a verdade. Uma modalidade de práticas estudadas por Foucault a esse respeito é a chamada prática confessional. Onde ressalta a autoridade do asilo e da clínica psicológica. Observa-se também multiplicação de “verdades” nas sociedades ocidentais. O que temos realmente são novos lugares e espaços, que procedem de antigas formas utilizadas nos primórdios da vida monástica cristã dos séculos III e IV d.C., mas também utilizados nas escolas helenísticas e greco-romanas.
            Nestas práticas confessionais o que vemos é o próprio sujeito que falando de si mesmo, logo neste caso é necessária uma dependência entre o sujeito que fala e um outro que escuta e encarrega-se de “interpretar” o enunciado: que é o caso do psiquiatra, do psicanalista. No entanto entre o psiquiatra e o “louco”, a verdade é dita dentro de uma oscilação, de uma astúcia de coerção e reconhecimento da loucura; entre o paciente e o psicanalista, ela é constituída no jogo da enunciação de si e da interpretação dos desejos. O papel do psiquiatra consiste em demandar daquele que verbaliza que trate de ser aquilo que ele diz e reconhece ser, ou seja, um pecador, um desviado, um louco.  O que o paciente diz sobre si é o que constitui a sujeição, a subjetividade cuja exigência é a produção de discursos racionais que conduzam à identidade verdadeira.
Para concluir podemos articular tudo o que foi exposto acima, sobre a História da e constituição da doença mental, a história da psicopatologia com a obra de Machado de Assis – “O alienista” (2006). Podemos observar ao longo da narrativa que Simão Bacamarte persegue incessantemente um objetivo. E qual era esse objetivo?  Descobrir as fronteiras entre a razão e a loucura, Pretende separar o reino da loucura do reino do perfeito juízo, mas a confusão em que ambas se misturam acaba aborrecendo o Doutor, que, para levar a efeito a seleção dos loucos, tem que saber o que é a normalidade. Assim, qualquer desvio do que era o comportamento médio, a aparência pública, qualquer movimento interior, que diferisse da norma da maioria era objeto de internação. O hospício é a Casa do Poder, e Machado de Assis sabia disso muito antes das teses de Foucault.
Há meu ver o que ele buscava mesmo era a glória, através de um “estudo da patologia cerebral”. Acredito que através de seu personagem principal (Simão bacamarte), Machado de Assis critica os cientistas de sua época, que, para ele, não tinham os conhecimentos suficientes e necessários. Esse conhecimento era uma gabolice, uma fanfarrice.  É Machado de Assis, desmascarando a hipocrisia humana. Mas esse não é o intuito de nosso trabalho.
 No começo, a inauguração do sanatório é comemorada pela população. Entretanto, as pessoas logo mudam de conduta e se revoltam contra Bacamarte, sua aprovação, seu salvo conduto para internar quem ele achasse que merecia de tratamento, cessa quando ele coloca, na Casa Verde, pessoas em cuja loucura a população não acredita.  Para Simão Bacamarte, o homem é considerado um caso que deve ser analisado cientificamente. Observamos então uma postura altamente cientificista que não vê o ser humano na sua integridade corpo, alma, inconsciente, consciente, enfim não vê o ser humano como sujeito.
Para Bacamarte, loucos são aqueles que apresentam um comportamento (anormal?) de acordo com o conhecimento da maioria. Então, numa primeira etapa, ele interna na Casa Verde todos os que, embora manifestassem hábitos ou atitudes discutíveis, eram tolerados pela sociedade: os politicamente volúveis, os sem opiniões próprias, os mentirosos, os falastrões, os poetas que viviam escrevendo versos empolados, os vaidosos. Dizia que "A razão é o perfeito equilíbrio de todas as faculdades, fora daí, insânia, insânia e só insânia." Em um dado momento de suas “pesquisas” chegou a dizer que os loucos agora são os leais, os justos, os honestos e imparciais, dizia ainda que devia se admitir como normal o desequilíbrio das faculdades e como patológico, o seu equilíbrio. E por fim, chegou a dizer que o único ser perfeito de Itaguaí era ele próprio, Simão Bacamarte. Logo, somente ele deveria ir para a Casa Verde. Declara curados todos os loucos, solta-os todos e, reconhecendo-se como o único louco irremediável, o médico tranca-se na Casa Verde, onde morre alguns meses depois.
            Não está em questão, a natureza da loucura ou de alguma outra teoria científica. Não existe naquela cidade loucura alguma, com exceção da loucura de Bacamarte, que produz a raiz da loucura que é o que interessa a Machado de Assis: a grande loucura cientificista e positivista, que busca os limites entre razão e dês - razão. A loucura de se pleitear uma explicação exaustiva e racional para a "mente humana". Creio que está aí a origem e o fundamento dos direitos e privilégios que o Alienista a si concede. São os direitos e privilégios que o século concede à ciência, particularmente à ciência médica em sua busca da administração da vida. O Alienista, portanto, não se escolhe louco. É o próprio século que o constitui assim.
E é exatamente pela mobilidade com a qual se movem as demais personagens do Alienista que Machado vai construindo sua feroz crítica a sociedade. Uma sociedade movida por interesses mesquinhos – como no caso do boticário Crispin Soares ou do barbeiro Porfírio.           Antes de qualquer coisa, note-se que Machado utiliza-se da incessante busca pela ‘verdade científica’ como uma forma de criticar àqueles que encontravam na Ciência o álibi para toda e qualquer atitude. Ainda que sem razão.
Assim, chegamos ao projeto da Casa Verde. E no ambicioso tratado sobre a Loucura, de Simão Bacamarte. É aqui que se encerra a crítica machadiana: quem são os loucos? O que é a loucura? Se a Ciência é a resposta para muitas indagações humanas, vale aqui lembrar que nem sempre o homem sabe como percorrer o caminho das respostas. A personagem de Simão Bacamarte surge como uma síntese que mostra a impotência ou a arrogância (?) do homem que se apropria das leis da Ciência e que em nome delas comete equívocos, promove tragédias e injustiças.
O que era feito antigamente com os “loucos” como já vimos no texto acima? Será que a Casa verde (tirando a vontade de projeção de Bacamarte) não tinha a mesma intenção? E nós enquanto estudantes, professores e trabalhadores que atuam nesta área da saúde mental, essa não é a realidade que vimos e presenciamos ainda nos dias de hoje! As intenções dessas instituições eram e são as seguintes: isolar o louco da sociedade; organizar o espaço interno da instituição, possibilitando uma distribuição regular e ordenada dos doentes; vigiá-los em todos os momentos e em todos os lugares, através dos médicos, enfermeiros, serventes...; distribuir seu tempo, submetendo-os à realidade do trabalho como principal norma terapêutica (aqui podemos frisar que nem sempre encontraremos esse tipo de estrutura a ser oferecida para essas pessoas). Assim, por sua estrutura e funcionamento, o hospital psiquiátrico deve ser um operador de transformação dos indivíduos: deve agir sobre os que abriga, atingir seu corpo, modificar o comportamento.
Portanto, voltamos para Foucault(1991), é uma máquina de poder, resultado de uma luta médica e política que impõe, cada vez com mais peso, a presença normalizadora da medicina como uma das características essenciais da sociedade capitalista. Vale lembrar que os “pacientes” de um hospital psiquiátrico sofrem muito com relação, a questão da subordinação dos psicólogos aos médicos, à ignorância ou maldade dos enfermeiros, ao processo de internação, à falta de uma lei nacional e de um serviço de assistência organizado pelo Estado que lhes faça valer seus direitos como seres humanos.
Foucault, procurava chamar atenção para dois pontos: por um lado, se a medicina mental apresenta a cura como sua aquisição científica, até hoje nunca deixou de reconhecer o seu lado negro: só se entra no hospício para não sair ou, na melhor das hipóteses, para logo depois voltar. Por outro lado, essa reconhecida incapacidade terapêutica, longe de pôr em questão a própria psiquiatria, serve de apoio a uma exigência de maior medicalização da sociedade. Faz a psiquiatria refinar seus conceitos para atingir novas faixas da população - numa evolução que vai do doente mental ao anormal e do anormal ao próprio normal -, tornando a sociedade uma espécie de asilo sem fronteiras, um asilo ilimitado.
Desde os primórdios da humanidade, a loucura, assim como o amor e o ódio, é uma sombra que observa com atenção o homem. É um tema fascinante, ela alimenta a fúria enciumada de Orfeu (shakespeare) ou os delírios cavalheirescos de Dom Quixote. E seguindo esses passos, nos lembramos de Van Gogh que decepou a própria orelha. E foi graças a ela (a loucura) , que se encontrou a justificativa para encerrar num sanatório a fabulosa escultora Camille Claudel. No mundo real ou na ficção, a loucura se faz presente. E se nos românticos ela surgia como uma das alternativas trágicas (assim como o álcool, o degredo e a morte) que encerrava o destino de personagens que se mantinham fiéis a sentimentos nobres, no realismo de Machado de Assis, ela surge como uma força completamente estranha ao homem que o força a se confrontar com uma realidade – econômica e comercial – que o coloca em risco diante de todas as suas certezas.
A História mostra que para todo provérbio popular há uma situação que anterior o justifica. E se é verdade que a loucura nos observa furtivamente, talvez encontremos na rude figura do alienista Simão Bacamarte a explicação para um ditado popular que se houve até nos dias de hoje: “de médico e louco, todo mundo tem um pouco”.

Referências Bibliográficas
ASSIS, Machado de. O Alienista. São Paulo: Ed.Moderna, 2006.
Beauchesne, H. – História da Psicopatologia, Martins Fontes, São Paulo, 1989;
FOUCAULT, M. “A constituição histórica da doença mental”. In: FOUCAULT, M. Doença mental e psicologia. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1991.
FOUCAULT, Michel. História da Loucura. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1985
Pessotti, Isaias. O século dos manicômios. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1996.
Jornal Brasileiro de psiquiatria ;Vol 48; no. 2; São Paulo.1999.



quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

Sonhos: realizações de desejos

            A interpretação dos sonhos, o qual Freud considerou como sendo o mais importante de todos os seus livros, foi publicado em 1989, com data de impressão de 1900, pois ele queria que sua descoberta fosse associada ao início de um novo século, levou dois anos para escrevê-lo, onde edificou os principais fundamentos da teoria psicanalítica.
            O sonho é colocado por Freud como sendo o guardião do sono, pois ele que permite que continuemos dormindo ou não. Sabemos que não é qualquer estimulo externo que nos desperta quando estamos dormindo e sonhando. Por vezes esses estímulos externos entram no sonho fazendo parte dele, para justamente continuarmos dormindo. O conteúdo dos sonhos, não consiste inteiramente de situações, mas inclui também fragmentos desconexos de imagens visuais, falas e mesmo fragmentos de pensamentos não modificados. Os sonhos levam em consideração a conexão que existe entre todas as partes dos pensamentos oníricos através da combinação de todo o material numa única situação. Reproduzem a conexão lógica pela aproximação no tempo e no espaço.
            Freud afirma que os sonhos tem função de realização de desejos e aponta três origens possíveis para sonhos como realizações de desejos: 1) pode ter surgido durante o dia e por motivos externos não ter sido satisfeito (situações objetivas), 2) pode ter surgido durante o dia e ter sido reprimido (situações com relações subjetivas), 3) pode não ter conexão alguma com o período da vida diurna e ser um destes desejos que só emergem da parte censurada da mente e tornam-se ativos à noite (situações puramente psíquicas). Os desejos diurnos conscientes, só podem ser integradores de um sonho se conseguir despertar um desejo inconsciente do mesmo teor.
            O material do sonho para se tornar inteligível, na maioria das vezes, é necessário que se repita, no todo ou em partes associadas/ deslocadas, em outros sonhos. É assim que verificamos que o deslocamento é uma das realizações especificas mais notáveis na elaboração onírica. A elaboração onírica se processa na direção da simbolização de alguma representação que requer significação. É por este motivo que Freud afirma que o sonho é uma realização de desejo e que pede uma significação, uma interpretação do desejo, interpretação que visa o significado do sonho, o significado que possa situar o desejo que o sonho mostra. Essa seria então a direção do trabalho na interpretação do sonho, verificar como o desejo se apresenta no sonho e de que desejo se trata.
            É tarefa da interpretação dos sonhos substituir o sonho pelos pensamentos oníricos latentes, desembaraçando o que a elaboração onírica teceu. O que o sonhador, no relato do sonho, associa a fala, é material para a interpretação analítica do sonho, uma vez que as lembranças de sonhos são fragmentárias e falsificadas. O relato, o que é falado no sonho, é o que mais importa, e o esquecimento de sonhos deve ser visto a luz, em grande conta, do poder da censura psíquica. O esquecimento de sonhos é tendencioso e serve a finalidade da resistência.
            Esquecemos os sonhos como um todo, ou parte dele, logo após despertar, ou aos poucos no decorrer do dia. E como vimos a resistência é o principal responsável por isso, após já ter feito o possível contra o sonho durante a noite. Por outro lado o tema de um sonho, bem como alguns de seus elementos podem reaparecer num outro sonho, quando contamos, mesmo na incerteza que estamos, ao relatá-lo, sendo fiel ao seu conteúdo. Por meio (pela via e pelo percurso) da analise é possível resgatar o conteúdo e pensamentos que causaram o sonho.
            O próprio relato também pode vir censurado, sofre o efeito da censura, mas com um certo nível de elaboração, uma vez que vai abrindo para novas associações com o material que produziu o sonho. Quando o sujeito ao relatar o sonho fica em dúvida, o caminho a seguir é aquele ao qual ele acredita não ser a via para decifrá-lo, o que nos indica a censura/resistência operando. Seguir dizendo é o caminho a ser indicado ao paciente. A distorção de um sonho está diretamente ligada ao valor psíquico que aquele conteúdo tem para o sonhador e que não pode ainda ser revelado, ou está prestes a ser revelado, e logo em seguida esquecemos, não o sonho, mas as associações que foram produzidas ao despertar.
            A interpretação também não pode ser consumada de uma vez por todas, percebemos sempre o quanto os nossos sonhos voltam em determinadas associações durante o processo de análise; voltam, pois ainda requer elaborações em torno do conteúdo que o causa, isto porque os conteúdos dos sonhos se formam sustentados por uma rede de elementos (Segundo Lacan, uma rede de significantes). O que não é passível de interpretar num sonho, está ligado ao que Freud denominou de “umbigo do sonho”, o ponto onde ele mergulha no desconhecido, como diria Lacan no Real.
            Devido a censura a resistência é sempre mais intensa na vigília do que quando dormimos e a regressão se dá como efeito da articulação entre a cadeia de vigília e a cadeia latente. Chamamos de regressão quando, num sonho, uma idéia novamente se transforma na imagem sensorial da qual se derivou originalmente é um efeito da resistência que se opõe ao avanço de um pensamento para a consciência, de lembranças dotadas de grande força sensorial (pulsional). O desejo é a força propulsora do sonho. O sonho é um ato psíquico que obedece as seguintes condições para a sua formação, são elas: não serem reconhecíveis como desejo, influencia da censura, fuga da censura, apresentação das idéias em imagens (cena do sonho), condensação de material psíquico, demanda de fachada racional e inteligível.
Como já dissemos anteriormente os sonhos são realizações de desejos, ou melhor o sonho é apresentação do desejo, expressão de desejo, porque o desejo é para Freud, a única força impulsora psíquica para a formação dos sonhos, mas os sonhos não são a única via para a manifestação de desejo, por exemplo o sintoma também tem esse propósito, apesar de ter uma estrutura que reage contra o desejo, pois com o sintoma o sujeito sofre. Tanto o sonho quanto o sintoma mostram o caminho para se chegar ao que o desejo inconsciente insiste, desejos estes que se encontram recalcados por não terem sido realizados. Mas será que todos os desejos podem ser realizados? Não! por isso sonhamos.
Não é qualquer desejo não realizado na vida de vigília que produz um sonho. Um desejo inconsciente só se torna material de sonho quando articulado com algum elemento do desejo inconsciente, onde este se junta àquele para se expressar. Freud nos diz que o desejo que aparece no sonho é um desejo infantil, e segue dizendo que a censura que age entre o inconsciente e o pré – consciente, é a guardiã de nossa saúde mental. Assim a censura que é uma instância do superego é de certa forma o que baliza o que do desejo pode ser tomado acertadamente, e o que do desejo deve ser recusado, permanecendo portanto no mais profundo do recalcado.
O estado de vigília e função da consciência, o estado do sono é função do pré-consciente e o sonhar é uma função inconsciente. Dormir acontece a partir do desejo de dormir e o sonho é o guardião do sono porque neste processo, o sonho é a realização do desejo de dormir. Assim se temos desejo de dormir é o inconsciente que possibilita que esse desejo de dormir se realize. Portanto quando uma insônia se apresenta algo do desejo inconsciente é que perturba o sono.
Freud diz que o processo onírico tem permissão para começar como realização de desejo, então primeiramente o processo do sonho vem responder a esse desejo inconsciente de dormir, mas quando essa tentativa de realização de desejo fere o pré-consciente com muita violência que ele não consegue continuar dormindo, o sonho rompe o compromisso e deixa de cumprir a sua tarefa de guardião do sono. Assim, podemos pensar que nos processos de insônia é o inconsciente que não nos deixa dormir. Pode-se pensar, então, que o material que nos faz sonhar é o mesmo que nos acorda do sono.
Os pensamentos e desejos inconscientes que ameaçam acordar o sonhador são denominados como conteúdos latentes do sonho. As operações mentais inconscientes por meio das quais o conteúdo latente do sonho se transforma em sonho manifesto, dá-se o nome de elaboração do sonho. Existe um critério para determinar se estamos sonhando ou acordados, e esse é o critério puramente empírico do fato de acordarmos. Tudo o que experimentamos entre adormecer e acordar é ilusório quando, ao despertar, verificamos que estamos deitados na cama.
O sonho como realização de desejo deve trazer prazer para o sonhador. Mas e os sonhos de angústia, os pesadelos, o acordar em sobressalto? Sabemos que a relação do sonhador com seus desejos é muito peculiar, ele os repudia e os censura, e a realização desses desejos gera angústia. Se do inconsciente é liberado o que está recalcado pelo desprazer que isto já provocou, no sonho este afeto volta e gera sonhos de angústia. Grande parte das vezes que sonhamos, despertamos no ponto onde a angústia começa a ser gerada. O sonho é para realizar desejo e não para provocar angústia. Os sonhos de angústia são sonhos de conteúdo sexual cuja respectiva libido se transformou em angústia. Um desejo recalcado encontrou meio de fugir à censura, e também a distorção que a censura implica; e só ocorrem quando a censura é total ou parcialmente subjugada, pois não pode, por estar censurado, sonha produzindo um sonho de angústia por ter que passar além do censurado.
A angústia no sonho aparece como possibilidade de atravessar o recalcado, ou então acorda-se do sonho. Mas a censura, justamente, também está a serviço de proteger da angústia por isso ela promove a deformação do sonho, para que o conteúdo que forma o sonho possa emergir. Os sonhos como realizações de desejos mesmo quando são desprazeirosos são, ainda assim, realizações de desejos, pois satisfazem inclinações masoquistas.
Os desejos que se originam na infância são a força motivadora indispensável à formação dos sonhos, que se processam por ligação com os restos diurnos da atividade inconsciente, pré-consciente e consciente, as quais abandonamos pela censura, e os estímulos sensoriais externos durante o sono, possibilitando que o sono não seja interrompido pelo material bruto do sonho.
Essa ligação se dá em relação a esses elementos diurnos os quais são catexizados para possibilitar que os conteúdos recalcados apareçam, ainda que distorcidos, de forma que a energia ligada à cadeia de pensamentos se difunde por todas as vias associativas que partem dela. Aqui também é possível verificar como o processo de transferência acontece na análise. Verificamos, também, que alguns elementos dos sonhos aparecem endereçados ao analista, ligados à situação transferencial.
Quando os pensamentos conscientes e/ou pré-conscientes, tem uma ligação intensa com o conteúdo inconsciente, estes se tornam inviáveis para a formação dos sonhos e podem tomar outra direção produzindo psicopatologias, por exemplo a formação de sintomas somáticos, ou aparecem em outras formações como lapsos ou atos falhos condensando esses conteúdos. Freud enuncia o recalcamento como a evitação da lembrança de qualquer coisa que um dia foi aflitiva, feita sem esforço e com  regularidade pelo processo psíquico, de forma que a realização dos desejos infantis não mais gerariam um afeto de prazer, mas sim de desprazer; e é precisamente essa transformação do afeto ( da idéia do afeto – representação) que constitui a essência daquilo que chamamos recalcamento.
O sonho como as demais formações do inconsciente dão abertura, são o ponto de partida para novas associações de idéias. Todo sonho versa sobre o próprio sonhador. Sempre que nosso próprio ego não aparece no conteúdo do sonho, mas somente alguma pessoa estranha, podemos presumir que nosso próprio ego está oculto, por identificação, por trás dessa outra pessoa. Em geral, é necessário buscar outra fonte de pensamentos do sonho, uma fonte que esteja sob pressão da censura. Em outras ocasiões, quando nosso ego de fato aparece no sonho,  situação em que isso ocorre pode ensinar-nos que alguma outra pessoa jaz oculta, também por identificação, por trás de nosso ego.
Podemos resumir então:
O motivo do esquecimento do sonho é a censura, e o motivo da censura é a presença de desejos e idéias que seriam inaceitáveis. Esses desejos são desejos infantis e de cunho sexual, daí a necessidade da grande deformação para que seja possível seu acesso ao consciente. Os responsáveis por esta deformação é o que chamamos de “trabalho do sonho” ou “elaboração do sonho”. É esse trabalho ou elaboração que transforma o material do sonho (restos diurnos, estímulos corporais, pensamentos do sonho) através dos mecanismos de condensação e deslocamento.
Freud fala que o sonho se passa numa “outra cena” diferente daquela onde se passam as ações da vida consciente. A outra cena é o inconsciente, onde o sonho realiza uma regressão tópica, formal e temporal, transformando palavras, idéias verbais em imagens visuais, sensoriais, alucinatórias. Ao ser interpretado, decifrado, Freud descobre que a significação oculta do sonho é a realização de um desejo infantil ligado ao complexo de Édipo.
Mas o que é interpretar? Freud nos diz que é dar sentido para algo que aparentemente não tem sentido, é decifrar o significado oculto, é desvendar a significação inconsciente, é ver além do manifesto o latente. É evidenciar o conflito defensivo entre as várias instâncias psíquicas em torno de desejo inconsciente. Verificamos então, que a interpretação ainda requer um ato, pelo sujeito, de significação para o desejo que se apresenta no sonho. Então após o conceito de interpretação Freud é como a reconstituição dos aspectos reais e fantasmáticos da história infantil e inconsciente do sujeito. O que é trazido através dos diversos materiais na associação livre (sonhos, atos falhos, sintomas, fantasias, resistências, transferência) e sua posterior construção, ou melhor, sua reconstrução pelo analista, estabelecendo a possibilidade de significação e resignificação da história simbólica do sujeito.
Assim, podemos pensar que a interpretação dos sonhos não é uma obra fundamental porque trata dos sonhos, mas porque funda o psiquismo no simbólico e como tal está também pelo que não está, presença/ausência, não localizável em elementos orgânicos do sistema nervoso. O sonho é de ordem simbólica e é por isso, e não por ser um fenômeno psíquico que ele demanda uma interpretação.
Se o sonho designa toda a região das expressões de duplo sentido, o problema da interpretação designa, reciprocamente, toda a inteligência do duplo sentido, pois ela abre sempre para o equívoco e não para a certeza, é pela interpretação que o problema do símbolo se inscreve no problema da linguagem. E como o símbolo é sempre duplo, sempre enigmático, a relação entre símbolo e interpretação é intrínseca.
No capitulo VII da Interpretação dos Sonhos, a importância está na forma do aparelho como tópica temporal, isto é a posição que os sistemas ocupam um em relação aos outros, e não a localização espacial dos sistemas. Assim trata-se da articulação dinâmica de todo o aparelho e não das instâncias em si, e essa articulação não pode ser pensada sem relação com a linguagem. A memória do sonho, por ser simbólica e se expressar em texto de imagens e não de palavras, necessita ser transformada em palavras e isso se dá quando o sonho é narrado, relatado na análise e pede interpretação. As lembranças da infância que o sonho traz mostram nossos primeiros anos não como foram, mas tal como aparecem nos períodos posteriores em que as lembranças foram despertadas. Nesses períodos de despertar, as lembranças infantis não emergiram, elas foram formadas nessa época.
Nossa memória e lembranças é uma ficção retroativa, retroativamente antecipatória, que pertence de pleno direito ao reino da fantasia. O sonho faz apelo à fala, fala do sonhador e fala do outro, o intérprete. É nesse sentido que o sonho se revela texto e , especificamente mensagem. Então o objeto de atenção não é o sonho como um todo mas as partes separadas de seu conteúdo, isto por conta da deformação que se revela na própria cena.
Desde Freud os processos de condensação e deslocamento, descrito em a Interpretação dos Sonhos, correspondem as referidas leis da linguagem – a metáfora, movimento de substituição, e a metonímia, movimento de ligação, juntas são responsáveis pela elaboração do sonho, permitindo que o conteúdo latente se transforme no conteúdo manifesto do sonho. Assim para que todo o sonho seja interpretado é necessário que não tentemos entendê-lo de uma só vez, na sua totalidade, pois devido a ser formado no inconsciente só existe afetos e fragmentos da realidade, logo muito confuso no primeiro momento. 

                    

domingo, 1 de janeiro de 2012

Freud vai ao Cinema - nº01

Analisar um filme é partir de uma escolha – escolher sobre que vertente abordar dentre as várias que são colocadas em tela. Desta forma, falar sobre o filme “Confiar” que tem como protagonista o ator Clive Owen, é pensar uma temática um tanto quanto inquietante à natureza do ser humano: o salto no escuro que se dá ao acreditar no seu semelhante.
Na era da internet, nem sempre a pessoa que está do outro lado do computador é tal qual se apresenta. Isso é o que descobre Annie (Liana Liberato), de 14 anos, que pensa ter encontrado seu primeiro namorado num bate-papo virtual. A adolescente, então se envolve num movimento de seduzir e se deixar seduzir por um homem adulto.
Neste contexto, sobressai o tema adolescência – e falar desta fase peculiar do desenvolvimento humano, dentre as várias mudanças que ocorrem, implica falar de um encontro com o sexo – o qual não se reduz à relação sexual propriamente dita, mas muito antes disso, é o encontro do adolescente com as questões (até então adormecidas), sobre o surgimento de um posicionamento na escolha sexual, ou seja, o ser homem ou ser mulher.
De uma forma paradoxal, a presença dos pais junto ao adolescente é fundamental, antes de mais nada, para que ele possa desempenhar sua função de separação dos mesmos. E esta fase é marcada principalmente, por um longo trabalho de elaboração de escolhas e um longo trabalho de elaboração da falta do e no outro.
“Confiar” não deixa de ser, também, interessante comentário sobre a nossa contemporaneidade. Costumamos ver no caráter um tanto anárquico da internet, garantia de liberdade de expressão sob todas as formas. Daí que qualquer tentativa de discipliná-la ganhe logo rótulo de censura. Nada disso é falso, mas a liberdade total de postarmos o que bem quisermos acobertados por pseudônimos, não é sinônimo automático de transparência.
Pelo contrário: vivemos na neblina. E é bom sabermos disso.
(Texto publicado na Revista Fox de Janeiro/2012)